quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Romance do Furdunço (cordel de Guilherme de Faria)




Romance do Furdunço
(cordel de Guilherme de Faria)


1
Amores, sonhos, virtude
São coisas que eu nunca pude
Realizar com clareza,
Me desculpem a afoiteza

2
De logo ir contando assim
Os podres da minha vida
Que não foi nem escolhida
Nem tão falhada, enfim.

3
Mas eis um sonho que eu pude
Realizar em plenitude:
Fazer um cordel fecundo,
Contando as coisas do mundo.

4
“O poeta­­”,disse Keats,
“não deve ser moralista”.
E nisto estamos quites:
Bom poeta é anarquista,

5
Quer dizer, não temos rei
Nem governo imperialista.
Democracia terei
No “Dia do cordelista”.

6
E agora dito isso
Vou contar um causo estranho.
Deixa eu enxugar o ranho
Que já começo o serviço.

7
Pois bem, havia um jagunço
Na minha terra de outrora
Que gostava de furdunço
Desde que fora de hora.

8
Entrando um dia na igreja
Convidou a freguezia
Pr’uma festa que faria
Sem admitir peleja.

9
Refiro peleja mesmo
Não aquelas “de repente”
Regadas a pinga e torresmo
Mas sem matança de gente.

10
O povo ressabiado
Quis ao menos levar faca.
Disse o jagunço engraçado:
“Só pra quem levar sua maca”.

11
Nos marcados hora e dia
Começou chegando o povo,
A sanfona já rangia,
Na zabumba Mestre Corvo.

12
Um músico com essa alcunha
Com fama de aziago
Pois pegou o cargo vago
Quando matou Mestre Cunha.

13
O triângulo, de bermudas,
Tocava feito um demônio
Parecia Mestre Judas
Tocando pra Santo Antônio.

14
O sanfoneiro (esquecia)
Era filho de Maria
Mas de Maria Joana
Que era uma velha sacana.

15
Havia também uma flauta
Do osso de uma canela
Mas não de pau-de-canela
Mas da canela do Malta,

16
Um antigo delegado
Que morreu estraçalhado
Pela jagunçada amiga
De um furdunço sem intriga.

17
Então lá pras tantas horas
O forró correndo solto,
Pinga e licor de amoras,
Só tendo morrido o Couto

18
E talvez o velho Pacheco,
Que esse já tava seco
E já foi embora tarde
( pimenta no outro não arde).

19
E mais dois ou três, se tanto,
Pois que tando desarmado
O povo jogava pr’um canto
E persistia animado.

20
Tô contando esse caso
Em louvor da nossa gente
Que sempre fez muito caso
De ser de paz e decente.

21
No fim da festa, surpresa!
Foi colocado na mesa
Um bolo imenso, branquinho
Doce como chantilinho,

22
De onde saiu um jagunço
De rifle armado e pistola
E começou o furdunço
Verdadeiro, sem esmola.

23
Foi bala pra todo lado
Tinha bala pra criança
Tinha bala com melado
De festim e de festança.

24
Só ficou vivo ninguém
E se afirmo o que disse
É que meu nome é “Ninguém”
Como o companheiro Ulisse.

25
Para contar a estória
Precisava um morto vivo
E eu sem contar não vivo,
Essa é a minha glória.

26
Agora que já contei
Passem logo a “mãe da besta”,
Saberão se não inventei
Se eu lembrar depois da festa.

FIM

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Romance dos tipos do sertão (Cordel de Guilherme de Faria)


Romance dos tipos do sertão - Memórias de Adão Ferreira
(Cordel de Guilherme de Faria)

1
Vosmecê, meu povo amigo
Já conhece a minha fama
De cantador meio antigo
Que em vez de cantar, declama.

2
Venho por essas estradas
Contando causo demais
Desse povo, nas noitadas,
E ainda tem muito mais.

3
Quanta gente conheci!
Quanta fé testemunhei!
Patranha também eu vi,
C’umas até concordei.

4
Mas dentre essa galeria
De tipos do meu sertão
Vou fazer presentação
Como a memória desfia.

5
Tem de tudo no meu álbum:
Vaqueiro, doutor, coronel,
Mulher, criança, e algum
Bandido cheio de fel.

6
Mas só para eu me lembrar
Vou descrever logo um tipo
Que me faz acreditar
Que pobre eu sou mas é rico.

7
Um avarento ridíco
Que morreu de inanição
Num trecho fértil do Chico
Oásis deste Sertão.

8
Esse rico indigente
Queria só exportar
O fruto de tanto suar
P’ras terras de outra gente

9
Para acumular dinheiro
Pro dia de precisar,
Juntando pra que ao herdeiro
Não fosse nunca faltar.

10
Mas ao morrer, cuidadoso,
Deixou um bilhete famoso:
“Me enterrem direto no chão,
Pr’eu economizar caixão”

11
“Que é muito desperdício,
Pois rede ou madeira e verniz
É coisa que eu nunca quis
Pr’os ossos do meu ofício.”

12
Tem também o causo ilustre
Dum coronel afamado
Que subiu no próprio lustre
Onde ficou pendurado

13
Só pra ver se flagrava
A patroa c’um peão
Que o leito compartilhava,
Seco como esse sertão.

14
O tiro veio de cima
E varou o coração
Dos dois, na última rima
Que restou nessa canção.

15
Até pro doutor legista
Foi difícil decifrar
De qual ponto de vista
Pôde assim se disparar.

16
Teve ainda um causo triste
D’um vaqueiro apaixonado
Que vivia de arma em riste
Mas sempre, sempre frustrado.

17
Pois o alvo da paixão
Tinha marido e filha,
Que no mar deste sertão
Ninguém vive numa ilha.

18
E o peão foi limpar
O campo de atuação
Numa mesa de bar
Onde armou discussão.

19
Depois de tiro acertar
Correu pro rancho rival
Não pra se confessar,
No que se deu muito mal

20
Pois a moça farejou
O sangue de seu marido
E da soleira aplicou
No peão um “pé do ouvido”.

21
“Fora, homem! Ocê não presta,
Que me tem enviuvado,
Cê matou homem honrado,
Honra é só o que me resta!”

22
E tem a estória escabrosa
De um vaqueiro feioso
Que resgatava a famosa
Tese do doutor Lombroso,

23
Que afirma que quem vê cara
Vê, por certo, o coração,
Desde que olhe para
A cara com muita atenção.

24
Esse ser mal acabado
Se apaixonou pela filha
De um vaqueiro calejado
De quem era a maravilha

25
Pois a moça era beldade
Pelo menos pro sertão
E com muita pouca idade
Já causava emoção.

26
E o vaqueiro Notredame
Que era corcunda e mancava
Como quem teve derrame
E mesmo assim trabalhava

27
Tinha um feio coração
Que no entanto comandava
A carcaça em sua paixão
E o vaqueiro obstinava.

28
Não sabendo se expressar
Em bela declaração
Decidiu foi raptar
A moça em camisolão

29
E manteve a prisioneira
Por três dias numa cova
O que pra ele era prova
De sua “paixão verdadeira”

30
Quando afinal encontraram
A moça já tava louca
E o vaqueiro enforcaram,
Que foi até coisa pouca:

31
Que a coluna do calhorda
Ficou retinha até
Estirada numa corda
Amarrada no seu pé.

32
Mas me perdoem esse causo
Que me parece impiedoso
Também creio que o descauso
Foi a causa e não Lombroso,

33
Pois se o pobre sem amor
Com a morte esticou um pouquinho,
Se criado com carinho
Saberia amor propor.

34
Ouçam agora a de um menino
Que ganhou uma viola
Quando ainda pequenino,
Bem maior que a sua bitola

35
Mas foi crescendo então
Todo em volta do instrumento
Que parece um segmento
Da costela desse Adão

36
Adão Ferreira, meu nome
Que aqui me apresento
Até com certo renome
Por causa do meu talento

37
Que é contar pr’ocês meu povo
Os causos de ocês mesmo,
Pra ocês se vê de novo
C’um pouquinho de torresmo

38
Que exagero é o colorau
Do contador afamado,
Pimenta de cheiro e sal
Para o causo ser lembrado.

39
E agora vou saindo
Deixando um gosto de pouco
Que é pr’ocês fica sorrindo
Do poeta meio louco

40
Que acredita na Poesia
Desse ser de maravía
Que é o homem comum,
Que são vocês: um a um!

FIM

Romance da Teia (Cordel de Guilherme de Faria)



1
Na vila do Tenente
Lá onde o Judas morou,
Vivia mulher valente
Que a Morte enviuvou.

2
Muito cedo ele findou,
Para quem tanto o amou,
E ela não carecia
Dos pretendentes que havia.

3
Penelópia a chamarei,
Já que sou testemunha
E o motivo dessa alcunha
Mais adiante lhes direi.

4
No entanto o expediente
Da teia não lhe ocorreu:
Resistia bravamente
Des’que o marido morreu,

5
Na base do clavinote
Carabina de bom porte
Que o marido já tinha
E deixou-lhe, com a casinha.

6
Penê, como eu a chamava
Uma caixa já esgotara
De munição e findava
Com a segunda que restara,

7
Não sabendo o que faria
Quando acabasse o chumbo.
Sua honra lhe doía
Como couro de bumbo.

8
Para ela era um espanto
Qualquer novo casamento,
Já que tinha amado tanto
E sido feliz tanto tempo.

9
O Destino em linha torta
Bateu-lhe afinal na porta
Com um moço forasteiro
Que chegou no seu terreiro.

10
Vinha meio extraviado,
Num pobre cavalo montado
Por uma cuia d’água
Pra si e pro seu Pintado.

11
Vinha dormindo na sela
Há dez dias como um Huno
Mas sem carne embaixo dela
E nem um pedaço de fumo.

12
Era um jovem apessoado
Mas estava piolhento,
De banho necessitado,
Que tava meio sebento.

13
Não parava de coçar
A cabeça, e de olhar
Com aqueles “óio” morteiro,
De fala mole, mineiro.

14
Bronco, belo, indefinido
Como um deus decaído,
Desavisado chegou,
Tanto que a desarmou.

15
Encostando o clavinote
Ela deixou-o entrar,
Banhou-o com água de pote
Pra depois o alimentar.

16
Levou-o até o seu leito
De viúva inconsolada,
Esquecendo o voto feito
E até a rede armada.

17
Mas não deitou-se ao seu lado:
Observou-o deitado,
Longamente, adormecido,
Como o “deus desconhecido”.

18
Fechou a porta, então
E depois pelo portão
Saiu pegando uma trilha
E andou um quarto de milha

19
Até uma cruz fincada
Quase na beira da estrada,
Que era o leito final
Do marido original.

20
E quase gritando falou:
“Sinésio me ouça agora,
E depois pode ir embora:
Seu mensageiro chegou!

21
Um homem puro e decente
Como criança inocente
Dorme sem medo e profundo
Como se bom fosse o mundo.

22
Deixe-me agora voltar
E armar novamente o tear
Posso contar nossa história
Sem carabina empunhar.

23
Passarei teu clavinote,
Qu’esse homem ostentará
Defendendo o nosso dote...
Sinésio, vai descançar! ”


FIM

Romance da bela oleira





(Cordel de Guilherme de Faria)


1
Foi aqui, meu camarada,
Nesta olaria arruinada
Que conheci a Maria,
Do próprio barro encantada.

2
Moldada da mão de Deus,
O nosso Supremo Oleiro,
Maria “dos olhos-meus”
Como disse um violeiro

3
Era a única beldade
Em toda esta região,
Sua fama, de verdade,
Espalhou-se no sertão

4
Pois a nossa bela oleira
Da cor mesma de uma telha
Tinha uma bela maneira
De erguer a sobrancelha


5
Sem que ríctus parecesse
Daquela Lilith, não Eva:
Por mais que a bela excedesse
Passava longe da Treva.


6
Não tinha pois procedência
A calúnia que correu,
Quando o moço apareceu
Enforcado na Querência.


7
O povo só tinha visto
A moça ser perseguida
Pela presença atrevida
Do filho de Pedro Xisto

8
Que a despediu, o patrão,
Pra poder então matá-la
Sem chamar muita atenção,
E jogá-la numa vala.


9
Mas o povo a encontrou
Atirada, seminua
Em cima da argila crua
De onde se originou,


10
E a carregou na tábua
Mesma, em que põem a telha,
Agora bandeja de mágoa
Ardente como uma grelha.


11
E a expuseram frente a escada
Do casarão da “Querênça”
Durante uma madrugada
Cantando uma “Incelença”

12
Já era santa a beldade
Só faltava ascender
E pra isso o povo acender
A grande vela da herdade.

13
Que foi logo incendiada
Antes de raiar o dia
Enquanto aquela “famía”,
Correndo se arretirava.

14
Agora nem tico-nem taco,
Nem casa nem olaria,
Nem telhas, nem alegria,
Nem herdade, tudo opaco.

15
Mas a ruína da olaria
Com renitente beleza
Recorda a natureza
Cobrando a bela Maria.

FIM

28/11/2004