quinta-feira, 8 de maio de 2008

Romance da Tocaia


(Cordel de autoria de Guilherme de Faria)

1
Eu tô aqui num funil
Faz três dias bem contado
Comendo pão seco salgado,
Bebendo do meu cantil.

2
Com o cano apoiado
Nesse toco de pau
Sem poder sair pro lado
Tô ficando meio mal.

3
E tô cansado demais
C’os inimigo esperando
Me mexer um pouco mais
Pro tiro ao alvo do bando.

4
Devem estar se revezando
Na mira, as perna esticando
Cozinham, dançam xaxado
E eu aqui, embosteado.

5
Candidato a presunto,
Se não fosse esse pedrão
Eu tava morto no chão
Como um saudável defunto.

6
Mas não me entrego jamais
Pra quem sequer fez pedido
Pois só querem morte, e mais:
Acabada e com recibo.

7
E eu não tô pra dar moleza
Pra essa vagabundagem:
Vão ter trabalho e dureza
Se querem contar vantagem.

8
Vão ter que gastar munição
Que eles sovinando estão.
Eu já fui faquir de feira
Com braseiro como esteira

9
E posso perder um terço
Sem perder a compostura
Cama de prego é berço
E tijolo é rapadura.

10
Há três dia alegre estava
No leito da Esmeraldina
Sem ver o que me esperava
Conspirando na surdina.

11
Essa vida é de veneta,
Tem coisa que se contar
Melhor pegar a caneta,
Já que tem de recontar.

12
O coronel João Badia
Queria desafogar
O ganso naquele dia,
Nesse mesmo lupanar.

13
Quem havera ter contado
Que essa mesma Esmeraldina,
Predileta, de tão fina,
Com contrato apalavrado

14
Tava mais pra concubina
De coronel safado
Do que simples messalina
Disponível no mercado!

15
E agora me vejo qual
Inocente vitimado
De um contrato comercial
Que nem sou interessado.

16
Mas uma coisa eu digo;
Só saio levando comigo
Dois ou três, ainda que torto,
Tenha que fingir de morto.

17
Esse Sertão já me deu
Muita coisa, pode crer.
Não posso nem me queixar,
Já podia até morrer.

18
Quem se queixa não merece
Uma bala ou uma prece.
Assim dizia o finado
Sogro do meu cunhado.

19
Aproveitei bem a vida
Sem ganhar dinheiro em pilha
Não gosto muito da lida,
Não caí nessa armadilha...

20
Pensado isso, agora,
Tou pronto pra ir embora.
Vou sair atirando
Pros lado, rindo e gritando.

21
Meu nome é João Austério
Mas ponham Austério só
Que sempre fui muito austério,
De comer pão com jiló

22
E de beber tubaína
Em festa de cavalhada.
Minha fraqueza e minha sina
Só se deve à mulherada.

FIM

domingo, 4 de maio de 2008

Romance da Justiça Seca (Cordel de Guilherme de Faria)


1
Numa tapera cozida
Neste plaino abandonado
Vivia, seca e esquecida,
A viúva de um soldado,

2
Mais dura que o seu terreiro
Onde cisca renitente
Só e sem galinheiro
Uma galinha demente.

3
Entretanto esta Maria
Não cansava de esperar
O filho que voltaria,
Que ela esperava chegar

4
Não do ventre ressequido
Mas daquela linha lá,
Ondulante ao bafo quente
Que sobe da terra má.

5
Um dia ela viu ao longe
Um cavaleiro monge
Num chegar agoniado
Muito tempo de avistado.

6
Mas ela não se abalou
Enquanto o peão chegava
Simplesmente ela aguardou
Enquanto ele apeava.

7
O peão chapéu tirou,
Bateu na sua perneira
E seus olhos fixou
Quando assentava a poeira.

8
“ Mulher, trago-lhe agora
Do seu filho que morreu
Um recado que ele deu
Pra eu trazer pra senhora.”

9
“Não sei como dar a notícia
Mas acho que até já dei;
As palavras não lembrei,
Digo isso sem malícia.”

10
“ Acho que o sol cozinhou
No meu miolo e apagou.
Me dê água e uma rede
Para o cansaço e a sede

11
Que amanhã talvez recorde
O recado que lhe cabe.
Bem cedo quando eu acorde
Lembrarei, nem que eu me acabe.”

12
E entrando se instalou
Na rede e dormiu inquieto
Sono de aventureiro
Cheio de um mundo desperto,

13
Sendo seu sonho sugado
Pela viuva em secura
Que ainda em seus lábios procura
Colher aquele recado.

14
Em vão ela aproximou
O ouvido de sua boca
Que quase ela despertou
Quem nunca dormiu de touca.

15
Mas o peão, dormindo,
Falava uma algaravia
Feito língua de gringo
Que, por certo, nem havia.

16
Logo que amanheceu
Assim que a água ferveu
Chiando naquela chaleira
O peão pisou na esteira.

17
Mas logo sentou no banco,
Coçando, de boca seca,
Só esperando a caneca
Pro motor pegar no tranco.

18
Bebeu e limpou a boca
Com as costas de sua mão
Olhou a viuva louca
E pôde dizer então:

19
“Mulher, eu fui visitado
Por seu filho em meu sonho.
Pediu-me que desse um recado
Que até parece bizonho:

20
Que o homem que o matou
Trouxe a notícia da morte
Pra sua mãe e um aporte:
“Que o castigo já chegou.”

21
“Por isso, mãe malfadada
Lhe peço que seja certeira
Que estou co’essa canseira
De sofrer n’alma culpada.”

22
Dizendo isso engasgou
Derramando o café
Longamente estertorou
Na boca uma espuma até.

23
De volta ao chão, sem esforço
Jazeu de bruço, estendido,
Punido por seu remorso,
Da terra sendo banido.

24
Entanto que a mãe fiel
Ainda continua olhando
Ao longe, o filho esperando
Na terra seca e cruel.

FIM
07/07/2002