quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Romance do Mágico (cordel de Guilherme de Faria)

1
Nascido numa aldeia
Que em sua simplicidade
Não chegava a ser feia
E nem era uma cidade

2
De tão pequena e singela
Onde o povo ainda come
Com a mão e na tigela,
Conquanto não passe fome.

3
Não tinha pois novidades
Entra mês ou saia mês
A não ser enfermidades
Ou a morte de uma rês,

4
Também de alguma tia,
(que era tudo parentalha),
Mas a dor se alguém morria
Era só fogo de palha.

5
E assim tempo passara,
Eu já tava com dez anos,
Ainda não chegara
O tempo dos desenganos.

6
Então chegou frente à escola
Um carro com auto-falante
Em cima de grande cartola,
Repetindo a todo instante:

7
“Hoje é dia de magia!”
“Conheçam o grande Faruque,
O mago que a gente espia
E não descobre seu truque!”

8
“É magia Abracadabra,
Não tem mistificação!”
(adorei a conjunção:
mistifica ou então abra...)

9
“Às sete horas da noite
Na sala da escolinha.
Mas que ninguém se afoite,
Avisa a professorinha"

10
"A quem "o Mago de Angola"
Agradece a gentileza
E o uso de sua mesa
Para pousar a cartola!”

11
E assim naquela tardinha,
Tremendo de excitação
Fui ver aquele que tinha
O segredo da emoção,

12
De negro vestido e cartola,
Com capa preta e vermelha,
Com aquela alta gola
Que a do "cujo" se assemelha.

13
O homem era elegante
E ainda trazia um anão
Com um bufante calção
E uma espécie de turbante.

14
Mas na hora da função,
Sendo muito alta a mesa
Para o pobre do anão,
Chamou a dona Tereza

15
Nossa professorinha
Que era linda de amar
(e nisso estava sozinha)
Para ser sua auxiliar.

17
Deu-lhe a sua cartola
E fez ela nos mostrar
Virando a cuja no ar
E até pondo na cachola

18
O que fez a gente rir
(ah! que graça ficou!)
E depois a entregou
Para o anão repetir.

19
De volta na mão do mago
Que tirou uma garrafinha,
Levou à boca num trago
Virando o resto que tinha

20
Dentro daquela cartola
Que começou a brotar
“Como os frutos da escola!”
(não deixou de proclamar).

21
E de repente, kabou!
Aquele pequeno arbusto
Sumiu para nosso susto
E uma pomba voou.

22
Foi um delírio na sala,
Eu chorava de beleza,
Mas a dona Tereza
Essa então nem se fala!

23
Mas depois de outros lances
Que não vou nem descrever
Nada mais foi como antes,
Mas pelo que se vai ver:

24
Todos com ar jucundo
Voltamos, sonhando um dia
Fazer aquela magia
E andar aí pelo mundo.

25
E dormi como quem goza
Depois de muito excitado
Para ser só acordado
Com uma notícia espantosa:

26
Dona Tereza sumira,
A nossa professorinha!
Com o mago ela fugira,
Deixando o anão na escolinha

27
Onde até hoje é o bedel,
Não de calção bufante
Mas ainda de turbante,
Que ele mantém, fiel.

28
Nunca mais se ouviu falar
Do mágico e da Tereza
Mas qual príncipe e princesa
Eles teimam em me ficar.

29
Mas o anão, coitado,
Que fora abandonado,
Nem se mostra ressentido,
Entre nós fora acolhido.

30
E se a gente lhe pedia
Revelar truques do mago,
Repetia, meio vago:
“Sedução... amor... magia...”

FIM

18/12/2008

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Romance do sangue e da água (cordel de Guilherme de Faria)


1
Não era um sítio isolado
A nossa terrinha antiga
Mas sem cabeças de gado,
Sem horta, que nada irriga.

2
Só cabras mascando coisas
Que nem sei se são raízes
Confinando com os Soizas
Com seus dois ou três Luizes.

3
Havia pouco em disputa
Mas sangue vinha na boca
E o gosto era de luta
E não se dormia de touca.

4
Por “dá lá aquela palha”,
E palha não faltava
Já que tudo esturricava,
Soa um tiro, outro ali falha.

5
Eu já tava descorçoado
De viver daquele jeito
Trazia uma bala no peito
E duas aqui do lado.

6
Mas em compensação
Já perdera dois dos filhos
E eles dois dos Luízes,
Que eram cinco os infelizes.

7
Já não se podia andar
A esmo por esta senda
Pois a bala das crianças
Era vendida na venda

8
E não era bala de mel
Ou de celofane o papel,
Mas de chumbo e amarga
Com direito de recarga.

9
E foi aí que eu quis
Chamar o velho Luiz
Para um duelo de morte
Que nos decidisse a sorte.

10
Desde que o que sobrasse
Então por honra adotasse
O filhos do falecido:
Nem vencedor, nem vencido.

11
O mais incrível, hoje vejo,
É que o Luiz velho aceitou
E comigo duelou,
Que era só um percevejo

12
Na cama dele, mais rico,
Que não tinha nem um tico
De medo, mas sim ganância,
Enquanto eu, arrogância.

13
Mas eu sabia que ao menos
Sua palavra mantinha
Até pelo orgulho que tinha,
O resto era de somenos.

14
E assim, de madrugada
Com a arma engatilhada
Nós fomos para a restinga
Seca como a caatinga

15
Mas eis que na chapada
Foi trovão que ecoou
E chamou a sua amada
Que sobre nós desabou

16
E encheu o leito seco
Que até mesmo desbordou
Cobrindo de verde e esterco
A horta que então vingou.

17
E o gado por milagre
Que pastava e paria
Devolvia pra Maria
O leite que lhe faltou.

18
Na chuva nos abraçamos
O velho Luis e eu
Juntando o dele e o meu
E só balas não plantamos

18
Jogando elas no rio
Como peso para anzol
Pois um novo arrebol
Encerrava o desvario.

19
E juntamos os dois Luizes
Com os meus dois Joões,
As Marias e seus botões
E estes velhos narizes

20
Que já não andavam erguidos
Farejando nosso sangue
Que agora está contido
Na alma como num mangue.

21
Formamo uma só família,
O velho Luiz finou,
Também a minha Maria,
Fiquei com a que restou.

22
Foi assim que a água veio
E que o sangue refluiu
Neste sertão que era feio
Quando reinava o fuzil

Neste mamilo de seio
Que o povo chama Brasil...

FIM

14/12/2008

Romance do papa-velório (cordel de Guilherme de Faria)



Romance do papa-velório

(cordel de Guilherme de Faria)

1
Pra esta platéia atenta
Não vou contar causo triste,
Mas um pra quem se contenta
Com pouco mais que um chiste.

2
Sei que a morte é causo sério,
Não gosta de quem co'ela brinca,
O riso logo se trinca
Quando diante do Mistério.

3
Freqüentava aqui o Empório
Um macabro empedernido
Chegado em defunto e velório
E de viúva o gemido.

5
Enterro, então? Prato cheio!
Para o Osório era um festão,
Que se punha ali no meio
Ou num’alça do caixão.

6
Depois, na beira da cova
Queria dar uma mão
Uma pá de terra nova,
Um berreiro e uma oração.

7
Mas sobretudo discurso,
Que nisto ele era mestre,
Embora das letras pedestre
E educado como um urso.

8
Foi então que nos morreu
O velho padre Tadeu
Envolto em sua batina
Branca como parafina.

9
Tinha fama de santinho,
Uma vida em castidade,
Nenhum fio de descaminho
Verdadeira santidade.

10
Ah! Lá estava o Osório!
O primeiro no velório
De terno preto o finório,
De gravata e suspensório.

11
Tudo de praxe correndo
Se não fosse a choradeira
Quando se abriu a torneira
Do besteirol tremendo.

12
Voavam pombos e flores,
Auréolas de santidade,
Nada de simples amores,
Mas Virtude e Castidade.

13
Mas não foi esse o problema,
Até aí, tudo bem...
Mas empolgado c’o tema
Osório foi mais além

14
E começou a contar
Suas próprias confissões
Para se vangloriar
Das tais absolvições

15
De que o padre era pródigo
E as modestas penitências,
Contrariando o código,
E nada de abstinências.

16
Logo a cidade inteira
Era toda desnudada
Não havia bandalheira
Que não fora perdoada.

17
Padre Tadeu pronto e presto
Perdoara até o prefeito
Em sua eleição de cabresto
E seu coreto malfeito

18
Que desabara c’o vento
E o relógio da torre
A girar como num porre
Parecendo um catavento.

19
Depois os vereadores
Todos eles grão-senhores
Numa aldeia de dores
Pobrezas e maus odores.

20
Quanto à nossa burguesia
(até aqui isso medra...)
Não sobrou nenhuma pedra
Dentro dessa sacristia.

21
Começou a revolta
Correria e empurrões
Até alguns palavrões
E a chegada de uma escolta

22
Para levar o Osório
De volta pro nosso Empório
Que ficou co’a triste fama
De urdir e jogar lama.

23
Desde então o “velorista”
(velador que desvelou)
Como que se aposentou
E só vive de entrevista

24
Quando chega alguém de fora
Vamos logo apresentando:
Esse é o nosso Osório
Que acabou com o velório

25
Do santo da nossa vila
Junto com a reputação,
Se não da população
Mas dos notáveis em fila.

26
Vocês perguntam, meus filhos,
Como o Osório conhecia
Os podres e os pecadilhos
Que por dentro acontecia?

27
É que o santo padre bebia
No nosso Empório e curtia
Contar pra nós os pecados
Dos poderosos e honrados

28
Que no domingo ajoelham
Naquele confessionário
Para abrir o relicário
Onde todos se assemelham!

FIM
14/12/2008

sábado, 13 de dezembro de 2008

Romance da barca furada (Cordel de Guilherme de Faria)



Romance da barca furada (Cordel de Guilherme de Faria)

(No man is an island... (John Donne 1572-1631)


1
Contarei coisas do povo
Com o mesmo entusiasmo,
Não vou repetir de novo
(Que é puro pleonasmo).

2
Não me canso de contar
Causos que admirei,
Que pude testemunhar
E os que eu mesmo inventei.

3
Este é um que considero
Que a verdade está nele,
Não há o que se assemelhe
Mais à mentira que o vero.

4
Vive naquela ilha
Um sujeito amargurado
Por ter perdido a família
Num barco velho e furado.

5
Há anos a travessia
Era feita ao continente
Pra buscar uma bacia,
Pra buscar cama patente.

6
Tudo naquela barca
Era trazido de longe
Uma cuia ou uma arca,
Jovem padre ou velho monge.

7
Genivaldo, nosso homem
Vivia daquele barco
Pois lá as pessoas comem
Sem nem fabricar um arco.

8
Quero dizer, dependentes
Dessa civilização
Para uma faca ou um pão,
E pra palitar os dentes.

9
Mas Genivaldo contava
Com sua barca querida
Que no entanto não cuidava
Com a atenção devida.

10
Nunca de tinta um demão,
A barca arquejava e gemia,
Esturricava e pedia
Por um pouco de alcatrão.

11
Até que naquele dia
Sua mulher quis ver a tia
E aproveitar pra trazer
Mais um pouco o de comer

12
Já que de peixe e farinha
Ela e a filha estavam fartas,
Precisando menos linha
E mais tinta para as cartas.

13
Aboletadas no barco
Com chapéu e a melhor roupa
As duas seriam marco
De mudança, ainda que pouca,

14
Que se fez naquela ilha
Depois que mãe e filha
Em sua última travessia
Sumiram sem garantia

15
Pois a verdade é que não
Vieram a dar nas praias
Os corpos e aquelas saias
Que virariam canção.

16
Genivaldo então virou
Aquele santo eremita
Que o contato humano evita,
Que não mais se procurou.

17
Nem barca e nem família,
Nem tesoura, nem um banho
No meio daquela ilha
Que ao menos teve um ganho

18
Pois começaram a plantar
E seus potes fabricar
Em honra à mãe e filha
E ao homem santo da ilha.

19
Por isso, apesar do ranço
Não há injustiça no mundo
Pois para haver avanço
Alguém tem que ir ao fundo...

20
Ou então fugir das Ilhas
Que muito perto ou a milhas
Isolam a alma e a mente:
Somos todos Continente!

FIM

13/12/2008

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Romance da moça que peidava flores (Cordel de Guilherme de Faria)


Romance da moça que peidava flores (Cordel de Guilherme de Faria)


1
Meus amigos, vão ouvir
Uma estória "inusitada"
Para quem não sabe nada
Começo por definir:

2
Este palavrão ostento
Como quem diz “gente pelada
Andando não em quebrada
Mas na igreja ou num convento”.

3
Ou como quando no parto
Um bebê em vez de choro
Diz olhando em volta o quarto:
“Vim desafinar no coro.”

4
Pois bem: havia na vila
Onde vim e fui criado
Uma donzela, a Camila
Com um dom inusitado:

5
A moça soltava pum
Com perfume de jasmim
E isso foi (ai de mim!)
Desgraça pra mais de um.

6
Mas isso só era fatal
Porque a moça era beldade
E quando soltava o tal
Tomava inteira a cidade

7
Principalmente de noite,
Pois lá não tem pé de jasmim,
Assim como não tem “boite”
Com moças de trancelim.

8
Então quando o tal perfume
Invadia ruas e lares
As mulheres tinham ciúme
Das cacholas dos seus pares

9
Pois aquilo era sintoma
De imaginação a voar
Para a fonte do aroma
E seu singelo piscar.

10
Então o nosso prefeito
Pressionado por comadre
Em vésperas de novo pleito
E açulado pelo padre

11
Decretou aquela rolha
Que seria a solução
Para evitar a escolha
Drástica da expulsão.

12
E assim foi a comitiva
Com a presença do padre
Com a rolha e uma comadre
À casa da nossa diva.

13
Mas depois de uma hora
A aldeia em polvorosa
Viu sair a tal pletora
Comovida e até chorosa.

14
Não se soube na verdade
O que lá dentro ocorreu
Pois a Camila morreu
Em odores de santidade.

15
Entre peidos e flores
Passamos por esta vida
Ninguém como a falecida
Uniu em si tais odores.

16
Bem... eu bem que alertei
Sobre a estória inusitada
Que eu mesmo testemunhei
E que tenho entranhada

17
Nas narinas da memória
E na visão encantada,
Pois fiz parte desta estória
E da “missão arrolhada”

18
Não esquecendo jamais
O último pum e os ais
Da despedida das flores
E a volta dos maus odores

19
Que a inveja perpetua
Na nossa aldeia mesquinha
Que agora vende e cultua
O “perfume da santinha”...

FIM
09/12/2008

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Romance do Chalaça (Cordel de Guilherme de Faria)

Romance do Chalaça
(Cordel de Guilherme de Faria)

1
Havia um cidadão
Conhecido por Chalaça
Que virou um cortesão
Não desprovido de graça

2
Pois era do Imperador
Companheiro de gandaias,
Nas baladas, a rigor,
Atrás de rabos de saias.

3
O Libertador Dom Pedro
Era um tanto libertino
Temerário pois sem medo,
Chegado num desatino.

4
Assim mimava o bendito
Como o seu favorito
Um pouco por pura pirraça,
Outro tanto por cachaça.

5
Dom Pedro era bom sujeito
Embora luxurioso,
Quando amigo era do peito
Permissivo e generoso.

6
Armados só c’um cacete
Se encontravam no escuro,
Consta que pulavam o muro
Do palácio do Catete

7
E iam pelas ruelas
Daquele Rio boêmio,
Meio escuro à luz de velas
Mas alegre como um grêmio.

8
Gostavam de um lupanar
De Madame Corine
Uma cortesã “très fine”
Vinda de outro além-mar.

9
Ali “fechavam a bodega”,
Quer dizer: só pros amigos,
Conferindo os umbigos
Numa espécie de refrega

10
Que durava a noite inteira.
Que digo? Também o outro dia
Enquanto a corte fazia
Vista grossa ou pagodeira.

11
Nosso Brasil, pois, já era
O que já fora em colônia
C’os Capitães de outra Era
Também chegados na esbórnia,

12
Mais tarde os coronéis
Trazendo pras suas salas
As mucamas das Senzalas
Pra servirem os pastéis

13
Desde que, sendo fiéis
E com medo que os roubassem
Nas alcovas desnudassem
Pra conferir os anéis.

14
Mas creio que divaguei,
Vou voltar pro Imperador,
Da zona também o rei
Coroado sem favor.

15
Pra que sigilo se tenha
E pra que ninguém se afoite
Tinham eles uma senha,
Pois mascarados, de noite

16
Em corredores escuros,
Para irem “a las putas”
Como diziam "los turros"
Com quem já tinham disputas.

17
Mas acontece que Andrada,
Um sujeito tão solene
Que queria ter o leme
De uma barca naufragada

18
Mantinha os seus espiões
Que lhe fizeram resenha
Das noites dos mandriões
E lhe transmitiram a senha.

19
O Zé Bonifácio, então
Mandou prender o Chalaça
E enchê-lo de cachaça
Ali mesmo, num porão.

20
E com a máscara e disfarçado
Com as roupas do finório
Foi encontrar c’o potentado
E seu segredo ilusório.

21
E correram pra a espelunca
Onde o grande conselheiro
Foi então jovem e fagueiro,
Coisa que não fora nunca.

22
E houve até quem o amasse
Sem que o Patriarca ousasse
Retirar o seu disfarce
Por mais que se lhe tentasse.

23
No outro dia, notou-se
Que uma dama com um véu
Foi recebida e portou-se
Como se fosse no céu,

24
No gabinete, em palácio,
E naquele mesmo dia
Nova baronesa havia
Por conta do Bonifácio!

FIM

05/12/2008

_________________________

Nota
Queridos eventuais leitores meus, reparem na data: este cordel acaba de nascer. Aconteceu vir de um jato, esta manhã, para surpresa minha, pois não esperava um surto assim, repentino de inspiração humorística, e ainda por cima com tema tão inusitado. Foi muito gratificante... (Guilherme de Faria)

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Romance da Milícia do Reino (cordel de Guilherme de Faria)


Romance da Milícia do Reino
(cordel de Guilherme de Faria)

1
Parecendo até chiar
Como chapa de fogão
A planura do lugar
Era só desolação.

Atravessando a caatinga
Uma fila desvalida
Cercada de urubutinga
Era de longe seguida

3
Por este seu cordelista
Que testemunhou o apelo
E até hoje o avista
Em sonhos de pesadelo.

4
Liderando aquele bando
Tava o vaqueiro Altamiro
Que tinha fama de mando
E de muito bom de tiro

5
No entanto carregava
Uma Bíblia empenada
E gasta, que ele ostentava
Brandindo como uma espada.

6
É verdade que o vaqueiro
Não a podia ler
Mas também é verdadeiro
O livro sagrado ser.

7
Altamiro virou então
E gritou pro povo em seguida:
“Gente, gente escolhida
E fiel do meu Sertão,”

8
“Deus me soprou o rumo
Da sua tropa leal.
É só não perder o prumo
Chegaremos no local.’

9
“Vamo então arrodiá
O cerro do Encantado
Até a porta encontrá
Do grotão acastelado”

10
“Onde no centro da Terra
Nosso rei Dom Sebastião
Tá preparando a guerra
Que trará a Redenção.”

11
“Ali na Sala do Trono
Ele esperando está
Esta milícia sem dono
Que a seus pés ajoelhará.”

12
“Então vamo se juntá
Às suas grandes hostes
Para a guerra começá
Pra isso chamados fostes.”

13
“Dom Sebastião cuidará
De instalar grande reinado
Em sua glória e será
Da Justiça o seu primado.”

14
“Pra isso vamo deixá
A nossa casca terrena
Quem me seguir verá
O rei no exílio, sem pena.”

15
Dizendo isso tirou
A luger da cartucheira,
À sua fronte apontou
E atirou bala certeira.

16
Seu corpo caiu pro lado
E a arma ficou no chão
Sob o olhar espantado
Mas sem grande comoção

17
Daquele povo bisonho
Que ficou ali parado
Sem nem parecer tristonho,
Apenas paralisado.

18
O livro santo jazia
No chão, meio respingado,
Um triângulo fazia
Para o corpo estacionado.

19
Foi então que um manquitola,
Segismundo chamado
Pegou o livro manchado
De sangue, mais a pistola

20
E botou-a na cintura
Enquanto brandia no ar
A sagrada escritura
Até o povo aclamar

21
Recomeçando a andar
Com o manquinho na frente
Num passo bem diferente
Todo mundo a balançar.

FIM
29/02/2003

Romance do Bamburro*
Capa do folheto de cordel "Romance do Bamburro', com xilogravura de Guilherme de Faria

(cordel de garimpo de Guilherme de Faria)

1
No rio do Ouro, Aprígio
Bateiava sem preguiça
Na rotina de litígio
Com as águas da cobiça.

2
A cada dia, na lida
De ciscar em desvario
As promessas de sua vida
Mas não as daquele rio.

3
O mesmo rio sovina
Que vinha regateando
Com a sorte e até matando
Numa espécie de chacina

4
Que já vinha há muito tempo:
Quando dava uma pepita
Cobrava em morte ou desdita
Com juros de contratempo.

5
O garimpeiro afinal
Pousou a sua batéia,
Furou ela com o punhal
Que fincou ali na areia

6
E levantando o olhar
Cobriu os olhos c’o punho
E começou a gritar
Perante o meu testemunho:

7
“Ó rio da minha desgraça!
Por ti meus filhos larguei
E a mulher, que enganei
Dizendo que sentei praça!”

8
"Tua promessa em meu sonho
Era falsa, afinal:
Não trago neste embornal
Senão fracasso medonho."

9
“Tô aqui faz muitos anos,
Tu nem mesmo me deixou
Meus amigos e os manos
Que o diabo bateiou.”

10
“E a poeirinha de ouro
Que me deste, tô aflito,
Não dá, desculpe o desdouro,
Para um dente ou um palito”.

11
“Nem um anel, nem um brinco
Pra Letícia, menininha
Que deixei com quase cinco
E que deve tá mocinha.”

12
“Tu me enganou demais!
Toma aqui minha batéia
Furada, pra que não mais
Tenha as pedras por platéia!”

13
“Guarda teu ouro maldito
Que volto pra minha tapera
Pra implorar perdão e o pito
Da Leutéria, que me espera!”

14
E tendo falado isso
O garimpeiro afastou
Deu as costas e arretirou
Encerrando o compromisso.

15
Já montado no jerico,
Veio o grito do Calixto:
”Ouro! Ouro! Vejam isto!
Bamburrei! Eu tô rico!”



16
“Aqui, debaixo ela tava
Dessa batéia largada!
Uma pepita arretada
Que por certo nem notava”

17
“Não fosse esse punhal
Bem ali como um sinal.
Tem nêgo bobo ou louco
Que enxerga muito pouco...”

18
“Tem o tamanho de um ovo
Daquela galinha da estória...
Óia, gente, óia de novo,
Já retirei a escória!”

19
Aprígio continuou
Esporeando o burrico
E nem o rosto voltou
Pra olhar o novo rico.

20
Sem hesitar enfrentou
A corrente que rolou
De gente, que o rio chamava
Mas não mais o enganava.

21
O caminho encontrou
Co’a alma leve de novo
E pra casa retornou
Com pena daquele povo.

FIM

28/02/2003


Nota
* bamburro- (ou "bambúrrio"(pronúncia mais antiga), esta palavra, típica do garimpo, designa um achado, na batéia, em pepita de ouro ou em diamante grande, que faria o garimpeiro enriquecer de repente, da noite pro dia. Todos sonham exatamente com isso.