terça-feira, 15 de dezembro de 2009

Cordel para a Dona Sinhá (de Guilherme de Faria)



Cordel para a Dona Sinhá (de Guilherme de Faria)

(a partir das lembranças de Eliana Tavares de Mattos,
minha esposa, natural da cidade de Barretos)


1
Pelos idos dos cinqüenta
Na minha saudosa Barretos
Tinha eu quase por parenta
A Dona Sinhá, sem netos,

2
Sem filhos, sem quase nada,
Mas que não pude esquecer
Os ditos e a gargalhada
Que ela tinha a oferecer.

3
Ah! Ela tinha um sobrinho
Que era escritor também
De que me lembro, o Zingo,
Mas Dona Sinhá é que vem

4
Sempre na minha memória
Com a sua alegria
E cuja singela história
Só posso contar em poesia.

5
Velhinha espirituosa
Merece que eu cite agora
Sua verve, comum embora,
Em contexto... saborosa.

6
Se se falava em quireras,
Ou conversa fora jogada,
Tratava como quimeras:
“Nada vez nada... nada!”

7
Ou se estava complicado
A gente explicar o porquê
De algum fato inusitado
Ela ajudava você

8
Dizendo em tom cabal:
“Pelos vinte e cinco motivos
Não é? Fulano de tal...
E começavam os risos.

9
Se meu pai que era sovina
Embora fosse bom homem
Nos negava a tubaína,
Ela, com um sorriso jovem:

10
“Tando guardado tá bom!”
Não é, querida Eliana ?
Dizia alto e bom som,
Num humor nada sacana,

11
Pois não havia julgamento
E sim grande aceitação
Pelo outro em seu momento,
Do jeito que as coisas são.

12
Se alguém se achava esperto
Mas se fazia de tonto
Dizia rindo, de pronto:
“Piquitinho dos óio aberto!”

13
Isso porque ela amava
Sobretudo a cachorrada
Que em sua casa cuidava
Apesar de questionada

14
Uma vez por seu Américo,
O marido num momento
Irritado, quase histérico:
“Ou eles ou eu, nu’m güento!”

15
Nos contou, estupefatos,
Pois séria ela respostou:
“Então... eles, cães e gatos!
Disse ao velho... e ele ficou.

16
Mas seu Américo também
Era figura engraçada
Sociável como ninguém,
De pijama na calçada

17
De tardezinha chegado
Do trabalho e então banhado
Vestia o “fardão” listado,
Seu descanso antecipado,

18
Na sua cadeira inclinada
Em equilíbrio precário
Jamais no entanto quebrada,
Nesse seu risco diário.

19
Mas eu era mesmo fã
Da velhinha e sua irmã,
Dona Inácia, paralítica
Santa, mirrada e raquítica

20
Que pegara, e não é óbvio,
O humor sem negação
Pelo diário convívio
Com esse ser de exceção,

21
A Dona Sinhá com seus ditos,
Lugares comuns da cultura
Mas pela experiência benditos
De uma alma em sua candura.

22
“Deus é pai, não é padrasto”
Dizia a torto e a direito,
Mas notável era o efeito
E nos renovava o cadastro

23
Na repartição do Mestre
Que às vezes por nosso orgulho
De ser sem asa e pedestre,
Tratávamos como um entulho.

24
“Pra se conhecer alguém
É preciso comer junto
Um "saco de sar" e sem
Fazer cara de presunto.”

25
“Formiguinha é bom pros óio”,
Trazendo um bolo dizia,
Como um cavalo de “tróio”
Mas que a gente bendizia


26
Porque era tão gostoso
Sabendo que mal não fazia.
Não como o presente famoso
De que a gente nem sabia.

27
A velha tinha um cãozinho
Que se chamava Martelo
E quando um menininho
Que se chamava Marcelo

28
Atropelado foi, confundia
(desculpem-na o paralelo)
Gritando, e a mim me arrepia:
“Foi-se, foi-se o Martelo!"

29
E do Zuza, de fama pão-dura,
Meu pai, que me dava medo:
“Dinheiro é assim, cê segura
Por aqui e sai pelos dedo.”

30
“Cardo de galinha e precaução
Nunca fez mal a ninguém”
Dizia, fazendo menção
Ao perigo rondando alguém.

31
E sempre, como a receita
De um tesouro verdadeiro,
Dizia assim: "Aproveita
Que o Bráz é tesoureiro."

32
Mas devo também mencionar
No fim dessa missa laica
A sua cadela Laika
Pra a Rússia homenagear.

33
Esta era a Dona Sinhá
Que é ‘tar e quar” que lembro
Naquelas tardes de lá
Dos dias do meu Setembro...

FIM

15/12/2009