sábado, 7 de janeiro de 2012

ROMANCE DA FILHA ROUBADA (cordel de Guilherme de Faria)


ROMANCE DA FILHA ROUBADA

(cordel de Guilherme de Faria)

1
Ouça agora povo eleito
Que de onde vem tem mais.
Sai da alma, sai do peito
(já não sei de onde sais...)

2
Me refiro à inspiração
De contar estas estórias
Que são a motivação
De viver tantas inglórias

3
Pois se me tornei vate,
Trovador, poeta ou bardo,
Devo em parte ao gesto tardo
De deixar falso combate

4
E aceitar a pobreza
(financeira, não da alma)
Pois verdadeir riqueza
É paz, fortuna que acalma.

5
Dito isso vou ao caso
Que havera de contar,
Repasso a estória e faço
Correr por dentro o olhar:

6
Naquele solar antigo
Na varanda pro pomar
Estava meu velho amigo
Sua estória a me contar,

7
Sentado na sua cadeira
De balanço a balançar,
Sua voz e sua maneira
Ainda posso lembrar,

8
Contando como perdera
Sua filha e sua mulher
Pr'uma "falange guerrera"
Que as quisera colher.

9
Eram jagunços de um tal
Capitão Valença chamado
Que apeou seu bando armado,
Dizendo: "Não leva a mal"

11
"Coronel, somos de paz,
E só queremos pousada.
Se és um homem sagaz
Nos darás , e uma montada"

12
"Pois precisamos de uma
Pr'uma carga que sobrou
Quando perdemos a bruma,
Égua baia que afogou"

13
"Quando atravessamos rio
Com ela bem crregada
De feijão farinha e mío
E a égua foi levada."

14
"Acreditei, nem temera,
Eu já estava acostumado
A dar guarida pra fera,
Jagunço e pau-mandado.

15
Já hospedei cangaceiro
Aquele "Diabo Louro",
Corisco, o rei do berreiro,
Que girava como um mouro.

16
Mas nunca fui um herdeiro
Do medo de quem hospedei,
Pois no sertão, um só rei:
Hospedado e hospedeiro.

17
E o tal capitão Valença
Não parecia feroz,
Não criava desavença,
Nem sequer erguia a voz.

18
Naquela noite minha filha
Que era moça muito pura
E era uma maravilha
De beleza e de candura

19
Eu escondi no porão
Onde dormiu assustada
(Não convinha mostração
Por causa da jagunçada).

20
Minha mulher servia a mesa
Pois já era passadota,
E eu com a mente presa
No porão e na filhota.

21
Talvez foi isso então,
Meu olhar denunciou
Uma tal preocupação
Que no meu porão ficou.

22
Então depois no meu quarto,
Insone de olho aberto,
Tendo a jagunçada farto
E espalhado ali tão perto,

23
Eu tive a agonia
De não saber, de fato,
O que além ocorria,
Sem poder sair do quarto.

24
Mas então lá pelas cinco
Eu escutei um relincho,
Levantei, saí da cama,
Que não dormi de pijama

25
E corri pra onde iam,
Trombando com as cadeiras,
Pisando naquelas esteiras
Onde já não dormiam

26
E pude ver da varanda
A tropa toda montada
A minha égua selada
Com elas meio de banda,

27
Minha mulher e meu tesouro
Levadas nesse roldão
No meio de um pelotão
Como para um matadouro.

28
Então gritei no vazio,
Abandonando o solar,
Vaguei na caatinga e no rio,
Nunca canso de vagar.

29
Mas sempre pra aqui retorno
E desço até o porão,
E na esperança eu torno
A olhar o seu colchão.

30
Duas vezes, afinal,
Logrei vê-la adormecida
Sobre o leito e no quintal
Debaixo de um pé de cidra.

31
Ela estava tão bonita,
Tão entregue em seu sono
Como se nunca a desdita
Fosse atingir o dono

32
Desta casa maldita
Agora surda e vazia."

Que só tinha uma visita,
Que era eu, que o ouvia...

FIM

06/03/2005

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Sobre o poeta de Cordel GUILHERME DE FARIA

GUILHERME DE FARIA é artista plástico profissional desde 1962, vivendo exclusivamente de sua arte desde então, com 50 anos de carreira ininterrupta, dedicados à pintura, ao desenho e à gravura. Tendo realizado centenas de exposições individuais e coletivas, no Brasil e no exterior, suas obras, que se distribuem em diversas fases, estão presentes em grandes coleções particulares , nacionais e estrangeiras, e em alguns museus brasileiros importantes como MAM, o MASP, e o Museu de Arte Brasileira da FAAP.
A partir de Julho de 2001, Guilherme, sabendo-se um contador de histórias nato (fato até então conhecido somente por seus amigos e parentes), resolveu dedicar-se também à literatura. Desde aquela data, não parou mais de escrever diariamente, tendo produzido um livro de contos “autobiográficos-delirantes” denominado “O Navio sob os Telhados”; um livro de poemas., um gracioso “Sonetos da Sertaneja¨”, um livro de estórias sertanejas em prosa, que ele chamou “Contos do Sertão”, todos inéditos, por serem recentes, e ainda não submetidos à editoras.. Mas considera publicado um livro de estórias em versos rimados, que realmente invadem o terreno da poesia, chamado ROMANCES DE CORDEL, que ele divulga em forma de folhetos ilustrados por ele mesmo, no estilo das xilogravuras populares do Nordeste.
A qualidade dos textos e das ilustrações vem notabilizando esse trabalho. O autor conseguiu uma grande homogeneidade de qualidade nos 100 poemas narrativos (até o momento), cujas estórias originais, de sua imaginação, revelam uma extraordinária fluência de inspiração, com linguagem, espírito e ambiência autenticamente sertanejos, sobre o fundo da caatinga nordestina, em plena seca. Trata-se de um fenômeno, pois o autor é paulistano, dos Jardins, sem ascendentes nordestinos, nascido e criado, como ele diz, “à beira da rua Augusta, esse “rio inglório”...
O poeta atribui esse “surto” tardio de inspiração sertaneja à experiência de uma expedição de sete dias realizada em 1970, pelo sertão de Pernambuco e Paraíba, numa perua cujo motorista que o convidou, tinha sido contratado para recolher mestres violeiros e repentistas, para conduzi-los até um grande congresso desses virtuoses que seria realizado em Campina Grande, na Paraíba. Guilherme conta essa estória, de maneira mítica, como “a viagem da procura do Pavão Misterioso”. Trinta anos depois, essa experiência única, decantando-se no espírito do poeta, e cristalizando-se, produziria o nascimento deste cordelista inusitado, cujos poemas, extremamente profundos, originais e belos, freqüentemente trágicos, mas ao mesmo tempo de grande lirismo, contendo também momentos de muito humor, poderíamos chamar de pequenas obras-primas.
O autor ainda teve a excelente idéia de reuni-los numa atraente caixinha de madeira, com título e ilustração na tampa, e original fecho de cadarço de couro, evocando os dos gibões dos vaqueiros; que ele, ironicamente denominou “Kit Cordel”, objeto que vem encantando as pessoas que o conhecem, podendo-se dizer que trata-se já de um novo sucesso do pintor e poeta. Essa obra foi adquirida já pela Biblioteca do Congresso em Washington, a maior e mais importante biblioteca do mundo, e por bibliotecas de universidades americanas, como a New Mexico University Library , USA., entre outras. (Vide “New Aquisitions List “ June 2005, Guilherme de Faria, Romances de Cordel), no Google.
(Texto de A. W.)

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

ROMANCE DA LOUCA (Cordel de Guilherme de Faria)

ROMANCE DA LOUCA
(Cordel de Guilherme de Faria)


1
Aquietem-se corações
E mentes, pra acompanhar
A estória e as emoções
Que agora passo a contar.

2
Sou viajante e poeta,
Andando aí a esmo,
Mas não sou nenhum asceta,
Como muito, com torresmo.

3
Às vezes em casa de pobre
Outras também na de rico;
Novela de horário nobre,
Metrô na hora de pico...

4
Vou colhendo meu acervo
Na boca mesma do povo,
Alguma vez dou no nervo,
Percebo ser um estorvo.

5
Mas nessa minha andança
Fui bater um dia, à toa,
Numa casa em vizinhança
Dessa que não destoa,

6
Gente humilde e comum
Mas vista na redondeza
Como de fosse algum
Refúgio de alta nobreza.

7
Percebi desde o começo
Sua fidalga maneira,
A fala sem um tropeço
De quem sequer vai à feira.

8
Mas o que mais me causou
Estranheza, foi a espera
Por alguém que não chegou
Senão quando a ceia já era:

9
Jovem mulher de uns vinte
Que saiu de um quarto ali
Vestida até com requinte
Num passo que nunca vi.

10
Dirigiu-se à janela
Com olhar quase febril
Consultando através dela
A lua primaveril.

11
Depois de um longo suspiro
Sem sorrir, voltou pra dentro,
Seu passo como um respiro,
Seu espaço como um centro.

12
A matriarca então pediu
Logo a minha licença
E depressa a seguiu
Saindo da minha presença.

13
Depois de um longo serão
Em que não pude cantar
Pois não havia canção
Que então viesse a calhar

14
E nem "deixa" para um causo
Pois o clima era de espera,
De suspense e não descauso,
De palácio e não tapera.

15
Fui afinal conduzido
Para um quarto c'uma vela,
Muito limpo e produzido
Como se fosse uma cela.

16
De convento ou monastério,
Já com a vista turvada,
Promessa de refrigério
Para a alma perturbada.

17
O sono não foi dos bons
Cercado que estava ali
De uma suíte de sons,
Alguns que eu nunca ouvi.

18
Até que lá pelas três,
A julgar por certo galo
Que cantou sem intervalo
Inconformado, talvez,

19
Percebi de novo o passo
Macio e deslizante
Da moça cujo compasso
Era frio e preocupante.

20
Então ouvi um gemido
E o lamento lá do fundo
De um ser talvez ferido
De uma dor que era do Mundo,

21
Logo seguido de um canto
Triste como um cantochão,
Pavana ou acalanto
Para um defunto no chão.

22
E dessa infanta funérea
Eu olhava pela fresta
Não mais a presença etérea
Mas um peso em sua testa

23
Que inclinada para o chão
Soluçava de dar dó
(sugerindo a tal canção
Qual no pescoço uma mó.

24
Pois naquela madrugada,
Ai dela! foi encontrada
No ribeirão afogada,
Por grande pedra ancorada.

25
E eu que não pude nada,
A não ser testemunhar
Uma tragédia lascada,
Saí dali sem falar.

26
Foi a única noitada
Esta que lhes contei
Em toda a minha jornada
Em que nem sequer cantei.

27
Mas ainda ouço o canto
Por dentro, que não o meu,
A dor de amor e o encanto
De um ser que em vida morreu

18
Vivendo sua própria morte
A cada noite tão longa,
Em que o destino, a má sorte
A hora estira, prolonga

29

Na espera eterna do amor
(e talvez não tenha paz
em sua morte, jamais)
Ó sorte, ó sina, ó horror!...

FIM

27/11/2004