domingo, 18 de março de 2012

Romance da Vidência (Cordel de Guilherme de Faria)


Romance da Vidência
(Cordel de Guilherme de Faria)



1
Preparem a sua emoção
Para um caso do Destino
Vou usar todo o meu tino
Pra cantar sem violão.

2
Só preciso achar o tom,
Que a música deste poema
Cria seu próprio sistema
De silêncios e de som.

3
Havia nesta divisa
Uma cigana arretada
O seu nome era Rafisa
Parecia alumiada.

4
Tinha o dom da profecia
Mas, cassandra malfadada
Era sempre acreditada
Só depois que acontecia

5
Aí houve o incidente,
Que chegou no seu terreiro
Um capiau renitente
Que era um pobre ferreiro.

6
Vinha montado sem sela
E embora fosse cascudo
Era bonito e parrudo
Sem papos nem xurumela.

7
Rafisa (quase esquecia)
Era um pouco desgrenhada,
Também tinha a latumia
De uma Medusa da estrada.

8
Quer dizer: era bonita
E até muito faceira
Descontada a cabeleira
E a saia sarapintada.

9
O matuto desmontou
E tirou o chapéu de couro
Parou um pouco e olhou
Com aqueles olhos de mouro.

10
“Siá Rafisa, venho vindo
De muito longe, seguindo
A fama de vosmecê,
Queira pois me recebê.

11
Venho da Pedra Preta
Um raso onde num chove
Desde a noite do cumeta
Que ainda o povo comove.

12
Mas num vim pedir trovão
Que num é de sua alçada
É lance de coração
Ou de vida amargurada.

13
Me deixa entrá que lhe esprico
Siá Rafisa, ocê me escuta,
E se falo, não discuta
Que se calo, me comprico.”

14
Rafisa olhou o matuto
De cima a baixo e botou
A mão no colo e virou
Com aquele ar arguto

15
E na mesa da cozinha
Sem a bola de cristal
Sentou depois da voltinha
Com seu jeito sensual.

16
“Como digo a vosmecê
Ando muito agoniado
Duma paixão sem mercê
Por um sonho inalcançado.

17
Ela se chama Lazinha
E nem sabe que eu existo,
Filha do coroné Xisto
Tar quar uma princesinha.

18
Quando passa amuntada
Joga moeda no ar
Pra meninada catar
No meio da gritaiada.

9
Um dia chegou na frágua
Pedindo um pouco de água
Bebeu sem me oiá, pensei,
Ou fui eu que não oiei

20
A não ser, pro seu pezinho,
Carçado cuma alpercata
Fina, de ouro e prata
Mostrando aqueles dedinho

21
Que prestei muito sentido,
Para minha perdição
O segundo mais comprido
Que o primeiro, como a mão.

22
Depois disso, ó minha mágoa,
Só brinca de esconde esconde:
Já não quis mais pedir água
Na casa deste visconde.

23
Siá Rafisa, me diga
O que faço pra arrancá
Do meu peito essa urtiga,
Pra dessa paixão me livrá?”

24
A cigana reparou
Nos olhos do capiau
Botou cartas e apontou
Um modesto dois de pau.

25
“Hóme,” disse a cigana,
“Tá escrito aqui tão claro,
E essa carta não me engana,
Que não vou nem cobrar caro.

26
A coronelinha vai
Beber água em sua palma
Mas num posso dizer mais
Pelo bem da minha alma.”

27
O matuto se afastou
Semeado de esperança
E pra sua forja voltou
Terminada a sua andança.

28
Uma semana passada,
Voltou ele galopando,
Parecendo alma penada,
E chegou logo gritando:

29
“Siá Rafisa, bota a sorte
Que quero o dia saber
E a hora da minha morte
Para o quanto vou dever

30
Porque de hoje não passo:
A moça veio beber
Da parma deste palhaço
Mas foi de tanto sofrer

31
No momento do trespasso.
Caminhou mais de três légua
Sangrando quase sem trégua
Pra vir morrer no meu braço.

32
Baleada no pulmão
Por um pretendente em mágoa,
Morreu bebendo da água
Da parma da minha mão!”

FIM

12/07/2001

Romance do Tuím (cordel de Guilherme de Faria)

Romance do Tuím
(cordel de Guilherme de Faria)


1
O menino Tuím
Dirigiu-se à taperinha,
Parou de fungar assim
Que viu a sua cabrinha.

2
Anaís, o nome dela,
Que dava leite, coitada,
Pr'um cabritinho e pra ela:
A Gerusa adoentada,

3
Que jazia na rede
Co'a aquela febre malsã
Desde ontem de manhã
Com delírio e muita sede.

4
Viviam num universo
Restrito mas não menor
Pois o terreiro disperso
Era o Sertão ao redor,

5
Esse espaço infinito
De tanta fábula e mito,
De tanta necessidade
Em sua realidade.

6
O fogão que era de lenha
Esquentava o café
Que era feito só de fé,
Ralo como a resenha

7
Do Almanaque da Sé
Que era a só mensagem
Que chegava como aragem
A esse mundinho até.

8
Tuím ficou só olhando
A Gerusa delirando
C’o olho dele parado
Muito grande, arregalado

9
De menino de Sertão
Que ocultava por dentro
Um olhar vindo do centro
Da alma e do coração.

10
Tuím pensava forte
Na irmã e sua sorte
Que ele creía estar
Sob proteção do lar

11
E da sua também
Desde que cobrira bem
Os olhos da pequeninha
Pr’ela não ver o que vinha

12
Naquele parto sangrento
De sua mãe na esteirinha
Gritando, como no vento
Fazia a sua cabrinha.

13
Agora olhava sozinho
Até que a Gerusa foi
Saindo sem dizer “oi”
Da rede e do corpinho.

14
Tuím a acompanhou
Na rede até o outeiro,
No solo que se elevou
Só para aquele canteiro

15
De cruzes todo brotado
Como peito cravejado
Das balas de um destino
De sentido insuspeitado.

16
Ali já estavam dormindo
Mais de um irmãozinho,
A mãe e até o paínho,
Uma tia e o Laurindo,

17
Moço que fora um irmão
Para o Tuím por um tempo
E deixara o convento
Pra cuidar de sua mão

18
Que o Tuím machucara
Ao brincar c’uma sovela
Enferrujada e ficara
Perto de ficar sem ela.

19
De algum modo pegou
No moço a infecção.
Tuím perdeu um irmão,
O outeiro outro ganhou.

20
Agora Gerusa ia
Ali dormir ao seu lado
Pois co’aquela companhia
Ninguém ficava acordado.

21
Mas aquela plantação
Prometia só crescer,
Havia ainda um irmão
Mais velho para perder

22
E uma tia que, coitada,
Vagava sem energia
Sonhando meio acordada
Com um vaqueiro que havia

23
Que ela pensava um barão
Vestido com uma couraça
Que era de aço sem jaça
E não de couro o gibão.

24
Tuím então se jurava
Sair do lar e partir
Antes que fosse dormir
No outeiro que o esperava.

25
Voltou até a tapera
Juntando as miserinhas:
O seu pião de madeira,
O canivete e as bolinhas,

26
Enterrou-as no terreiro
Afastando o espevite
De Anaís que um certo cheiro
De cola fazia apetite.

27
Depois calcou o lugar
Para só ele encontrar
E reentrando fez a trouxa
Com quase nada, até frouxa.

28
Pendurou-a no ombro
E passou pela cabrinha
Que o olhava sem assombro
Como se fosse advinha

29
Enquanto ela era olhada
Num mesmo olhar que continha
O casebre e a cabrinha,
Com a cabeça voltada

30
Andando pra frente ia
Com um andar que ninguém vira.
Co’esse jeito parecia
O andar do Curupira.

31
Até que afinal virou
O rosto também pra frente
Co’aquele passo de gente
Que o destino enfrentou.


32
Andando naquela planura
Sem fim, que o engolia
Para quem somente o via
De uma mesma postura

33
Pois sua estória não ia
Acabar na travessia:
O pequeno sertanejo
Seria agora um andejo

34
E haverá de chegar
Na são Paulo, capital,
Pra de novo começar
Uma saga emocional

35
Que havera de vencer
Porque já nascera forte
E sendo cabrinha do Norte
Tinha o que dar e vender.

FIM