domingo, 24 de janeiro de 2010
ROMANCE DA VIDÊNCIA (Cordel de Guilherme de Faria)
Romance da Vidência
(Cordel de Guilherme de Faria)
1
Preparem a sua emoção
Para um caso do Destino
Vou usar todo o meu tino
Pra cantar sem violão.
2
Só preciso achar o tom,
Que a música deste poema
Cria seu próprio sistema
De silêncios e de som.
3
Havia nesta divisa
Uma cigana arretada
O seu nome era Rafisa
Parecia alumiada.
4
Tinha o dom da profecia
Mas, cassandra malfadada
Era sempre acreditada
Só depois que acontecia
5
Aí houve o incidente,
Que chegou no seu terreiro
Um capiau renitente
Que era um pobre ferreiro.
6
Vinha montado sem sela
E embora fosse cascudo
Era bonito e parrudo
Sem papos nem xurumela.
7
Rafisa (quase esquecia)
Era um pouco desgrenhada,
Também tinha a latumia
De uma Medusa da estrada.
8
Quer dizer: era bonita
E até muito faceira
Descontada a cabeleira
E a saia sarapintada.
9
O matuto desmontou
E tirou o chapéu de couro
Parou um pouco e olhou
Com aqueles olhos de mouro.
10
“Siá Rafisa, venho vindo
De muito longe, seguindo
A fama de vosmecê,
Queira pois me recebê.
11
Venho da Pedra Preta
Um raso onde num chove
Desde a noite do cumeta
Que ainda o povo comove.
12
Mas num vim pedir trovão
Que num é de sua alçada
É lance de coração
Ou de vida amargurada.
13
Me deixa entrá que lhe esprico
Siá Rafisa, ocê me escuta,
E se falo, não discuta
Que se calo, me comprico.”
14
Rafisa olhou o matuto
De cima a baixo e botou
A mão no colo e virou
Com aquele ar arguto
15
E na mesa da cozinha
Sem a bola de cristal
Sentou depois da voltinha
Com seu jeito sensual.
16
“Como digo a vosmecê
Ando muito agoniado
Duma paixão sem mercê
Por um sonho inalcançado.
17
Ela se chama Lazinha
E nem sabe que eu existo,
Filha do coroné Xisto
Tar quar uma princesinha.
18
Quando passa amuntada
Joga moeda no ar
Pra meninada catar
No meio da gritaiada.
9
Um dia chegou na frágua
Pedindo um pouco de água
Bebeu sem me oiá, pensei,
Ou fui eu que não oiei
20
A não ser, pro seu pezinho,
Carçado cuma alpercata
Fina, de ouro e prata
Mostrando aqueles dedinho
21
Que prestei muito sentido,
Para minha perdição
O segundo mais comprido
Que o primeiro, como a mão.
22
Depois disso, ó minha mágoa,
Só brinca de esconde esconde:
Já não quis mais pedir água
Na casa deste visconde.
23
Siá Rafisa, me diga
O que faço pra arrancá
Do meu peito essa urtiga,
Pra dessa paixão me livrá?”
24
A cigana reparou
Nos olhos do capiau
Botou cartas e apontou
Um modesto dois de pau.
25
“Hóme,” disse a cigana,
“Tá escrito aqui tão claro,
E essa carta não me engana,
Que não vou nem cobrar caro.
26
A coronelinha vai
Beber água em sua palma
Mas num posso dizer mais
Pelo bem da minha alma.”
27
O matuto se afastou
Semeado de esperança
E pra sua forja voltou
Terminada a sua andança.
28
Uma semana passada,
Voltou ele galopando,
Parecendo alma penada,
E chegou logo gritando:
29
“Siá Rafisa, bota a sorte
Que quero o dia saber
E a hora da minha morte
Para o quanto vou dever
30
Porque de hoje não passo:
A moça veio beber
Da parma deste palhaço
Mas foi de tanto sofrer
31
No momento do trespasso.
Caminhou mais de três légua
Sangrando quase sem trégua
Pra vir morrer no meu braço.
32
Baleada no pulmão
Por um pretendente em mágoa,
Morreu bebendo da água
Da parma da minha mão!”
FIM
12/07/2001
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário