ROMANCE DA LOUCA
(Cordel de Guilherme de Faria)
1
Aquietem-se corações
E mentes, pra acompanhar
A estória e as emoções
Que agora passo a contar.
2
Sou viajante e poeta,
Andando aí a esmo,
Mas não sou nenhum asceta,
Como muito, com torresmo.
3
Às vezes em casa de pobre
Outras também na de rico;
Novela de horário nobre,
Metrô na hora de pico...
4
Vou colhendo meu acervo
Na boca mesma do povo,
Alguma vez dou no nervo,
Percebo ser um estorvo.
5
Mas nessa minha andança
Fui bater um dia, à toa,
Numa casa em vizinhança
Dessa que não destoa,
6
Gente humilde e comum
Mas vista na redondeza
Como de fosse algum
Refúgio de alta nobreza.
7
Percebi desde o começo
Sua fidalga maneira,
A fala sem um tropeço
De quem sequer vai à feira.
8
Mas o que mais me causou
Estranheza, foi a espera
Por alguém que não chegou
Senão quando a ceia já era:
9
Jovem mulher de uns vinte
Que saiu de um quarto ali
Vestida até com requinte
Num passo que nunca vi.
10
Dirigiu-se à janela
Com olhar quase febril
Consultando através dela
A lua primaveril.
11
Depois de um longo suspiro
Sem sorrir, voltou pra dentro,
Seu passo como um respiro,
Seu espaço como um centro.
12
A matriarca então pediu
Logo a minha licença
E depressa a seguiu
Saindo da minha presença.
13
Depois de um longo serão
Em que não pude cantar
Pois não havia canção
Que então viesse a calhar
14
E nem "deixa" para um causo
Pois o clima era de espera,
De suspense e não descauso,
De palácio e não tapera.
15
Fui afinal conduzido
Para um quarto c'uma vela,
Muito limpo e produzido
Como se fosse uma cela.
16
De convento ou monastério,
Já com a vista turvada,
Promessa de refrigério
Para a alma perturbada.
17
O sono não foi dos bons
Cercado que estava ali
De uma suíte de sons,
Alguns que eu nunca ouvi.
18
Até que lá pelas três,
A julgar por certo galo
Que cantou sem intervalo
Inconformado, talvez,
19
Percebi de novo o passo
Macio e deslizante
Da moça cujo compasso
Era frio e preocupante.
20
Então ouvi um gemido
E o lamento lá do fundo
De um ser talvez ferido
De uma dor que era do Mundo,
21
Logo seguido de um canto
Triste como um cantochão,
Pavana ou acalanto
Para um defunto no chão.
22
E dessa infanta funérea
Eu olhava pela fresta
Não mais a presença etérea
Mas um peso em sua testa
23
Que inclinada para o chão
Soluçava de dar dó
(sugerindo a tal canção
Qual no pescoço uma mó.
24
Pois naquela madrugada,
Ai dela! foi encontrada
No ribeirão afogada,
Por grande pedra ancorada.
25
E eu que não pude nada,
A não ser testemunhar
Uma tragédia lascada,
Saí dali sem falar.
26
Foi a única noitada
Esta que lhes contei
Em toda a minha jornada
Em que nem sequer cantei.
27
Mas ainda ouço o canto
Por dentro, que não o meu,
A dor de amor e o encanto
De um ser que em vida morreu
18
Vivendo sua própria morte
A cada noite tão longa,
Em que o destino, a má sorte
A hora estira, prolonga
29
Na espera eterna do amor
(e talvez não tenha paz
em sua morte, jamais)
Ó sorte, ó sina, ó horror!...
FIM
27/11/2004
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