domingo, 4 de maio de 2008

Romance da Justiça Seca (Cordel de Guilherme de Faria)


1
Numa tapera cozida
Neste plaino abandonado
Vivia, seca e esquecida,
A viúva de um soldado,

2
Mais dura que o seu terreiro
Onde cisca renitente
Só e sem galinheiro
Uma galinha demente.

3
Entretanto esta Maria
Não cansava de esperar
O filho que voltaria,
Que ela esperava chegar

4
Não do ventre ressequido
Mas daquela linha lá,
Ondulante ao bafo quente
Que sobe da terra má.

5
Um dia ela viu ao longe
Um cavaleiro monge
Num chegar agoniado
Muito tempo de avistado.

6
Mas ela não se abalou
Enquanto o peão chegava
Simplesmente ela aguardou
Enquanto ele apeava.

7
O peão chapéu tirou,
Bateu na sua perneira
E seus olhos fixou
Quando assentava a poeira.

8
“ Mulher, trago-lhe agora
Do seu filho que morreu
Um recado que ele deu
Pra eu trazer pra senhora.”

9
“Não sei como dar a notícia
Mas acho que até já dei;
As palavras não lembrei,
Digo isso sem malícia.”

10
“ Acho que o sol cozinhou
No meu miolo e apagou.
Me dê água e uma rede
Para o cansaço e a sede

11
Que amanhã talvez recorde
O recado que lhe cabe.
Bem cedo quando eu acorde
Lembrarei, nem que eu me acabe.”

12
E entrando se instalou
Na rede e dormiu inquieto
Sono de aventureiro
Cheio de um mundo desperto,

13
Sendo seu sonho sugado
Pela viuva em secura
Que ainda em seus lábios procura
Colher aquele recado.

14
Em vão ela aproximou
O ouvido de sua boca
Que quase ela despertou
Quem nunca dormiu de touca.

15
Mas o peão, dormindo,
Falava uma algaravia
Feito língua de gringo
Que, por certo, nem havia.

16
Logo que amanheceu
Assim que a água ferveu
Chiando naquela chaleira
O peão pisou na esteira.

17
Mas logo sentou no banco,
Coçando, de boca seca,
Só esperando a caneca
Pro motor pegar no tranco.

18
Bebeu e limpou a boca
Com as costas de sua mão
Olhou a viuva louca
E pôde dizer então:

19
“Mulher, eu fui visitado
Por seu filho em meu sonho.
Pediu-me que desse um recado
Que até parece bizonho:

20
Que o homem que o matou
Trouxe a notícia da morte
Pra sua mãe e um aporte:
“Que o castigo já chegou.”

21
“Por isso, mãe malfadada
Lhe peço que seja certeira
Que estou co’essa canseira
De sofrer n’alma culpada.”

22
Dizendo isso engasgou
Derramando o café
Longamente estertorou
Na boca uma espuma até.

23
De volta ao chão, sem esforço
Jazeu de bruço, estendido,
Punido por seu remorso,
Da terra sendo banido.

24
Entanto que a mãe fiel
Ainda continua olhando
Ao longe, o filho esperando
Na terra seca e cruel.

FIM
07/07/2002

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