domingo, 27 de abril de 2008

Romance das Três Léguas (Cordel de Guilherme de Faria)


1
Estou voltando pro lar
Há tanto tempo no lombo
Do meu cavalo, que tombo
Se eu quiser apear.

2
Água só do meu cantil
Que também está no fim
Experimento chorar, pra refil,
Mas é salgado e ruim.

3
Deus sabe o que faz, é certo.
No meio desse areal
Tento ficar esperto
Pra encontrar um sinal

4
Cuja simples existência
Num pedrouço ou calhau
Serviria de fanal
Para minha referência,

5
Do rumo da minha tapera
Se é que ela ainda existe...
Não! Ela está à espera,
Socorrinho não desiste!

6
Pra esta Peleja sair,
(e esta guerra não deu tréguas)
Quando me seguiu três léguas,
Vi que podia partir...

7
Mas somente pra voltar.
E agora que tou no rumo
Não posso nem galopar
Que já tou perdendo o prumo.

8
E o coração cresce tanto
No caixa do peito preso
Que não podendo voar,
Tá fazendo um contrapeso.

9
Me alembro também da noite
Que precedeu a partida
Para essa guerra maldita
Que ainda arde como açoite.

10
Socorrinho, à meia luz,
Contendo o choro botou
Na minha mão uma cruz
Que a canivete talhou.

11
E depois, devagarinho
Se enroscou em mim na rede
Até que saí de mansinho
Como quem só está com sede.

12
Saí sem tomar café
E estava ainda escuro,
Pulei por cima do muro
Pro portão não fazer “nhé.”

13
Fui até o cercado
Pra pegar o meu Pintado
E depois de um trecho andado
Olhei pra trás, assombrado.

14
Sentindo a rede vazia
Socorrinho levantou
E aquelas léguas andou
Que até verso merecia.

15
Mas não posso nem pensar
Que ainda faltam umas milhas;
O Tempo tem armadilhas
Para nos aprisionar.

16
Quantas vezes me enredei
Na própria imaginação,
Em rancho alheio parei
Cheio de tentação.

17
Ouvi assum-preto ao léu
E só tinha Sariama.
Nadei em açude de mel
Onde só havia lama.

18
E do coronel Alcino,
Aquela filha Nauzinha?
Até me fez perder o tino
Por ser mais que bonitinha...

19
Fiquei desmemoriado
E nas garras da ambição.
Mas fugi contrariado:
Era tudo perdição.

20
E o capiau grandalhão
De um olho só, meio guei
Que me prendeu num grotão
Que um queijo lhe roubei?

21
Sem falar naquela outra
Que linda como uma potra
A certidão me mostrou
De cem anos... Me enganou?

22
Aquela foi bem difícil
De me livrar depois disso
Gritou até ficar rouca,
Não gosto de gente louca.

23
Mas pior foi a Iara
Daquele rio que é dela:
Sem pôr cera nos ouvidos
Quase caí na esparrela.

24
Pois queria me fazer
Pular daquela canoa
Dizendo que eu ia à toa
Sem meu rancho perceber.

25
Até imitou a voz
Da Socorro, coisa atroz,
Pois por pouco não me atiro:
Se não me amarro, até viro...

26
Mas começo a farejar
A terra do meu ranchinho.
Esta noite hei de chegar,
Já sinto, devagarinho.

27
Socorrinho há de ter sido
Fiel, que matá-la não quero,
Pra morrer desiludido.
Se penso, me desespero.

28
Mas se alembro das três léguas
Sei que verei minha amada.
Já ouço o relincho das éguas
Que saúdam minha montada.

29
Nesta noite abençoada
Dormirei à lua cheia
C’o arrulho dela, enroscada,
E o crepitar da candeia

30
De azeite debaixo da Santa
E aquele leve estralar
Das brasas da nossa janta
Até de novo raiar.

FIM

20/07/2001

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