Romance do Tuím
(cordel de Guilherme de Faria)
1
O menino Tuím
Dirigiu-se à taperinha,
Parou de fungar assim
Que viu a sua cabrinha.
2
Anaís, o nome dela,
Que dava leite, coitada,
Pr'um cabritinho e pra ela:
A Gerusa adoentada,
3
Que jazia na rede
Co'a aquela febre malsã
Desde ontem de manhã
Com delírio e muita sede.
4
Viviam num universo
Restrito mas não menor
Pois o terreiro disperso
Era o Sertão ao redor,
5
Esse espaço infinito
De tanta fábula e mito,
De tanta necessidade
Em sua realidade.
6
O fogão que era de lenha
Esquentava o café
Que era feito só de fé,
Ralo como a resenha
7
Do Almanaque da Sé
Que era a só mensagem
Que chegava como aragem
A esse mundinho até.
8
Tuím ficou só olhando
A Gerusa delirando
C’o olho dele parado
Muito grande, arregalado
9
De menino de Sertão
Que ocultava por dentro
Um olhar vindo do centro
Da alma e do coração.
10
Tuím pensava forte
Na irmã e sua sorte
Que ele creía estar
Sob proteção do lar
11
E da sua também
Desde que cobrira bem
Os olhos da pequeninha
Pr’ela não ver o que vinha
12
Naquele parto sangrento
De sua mãe na esteirinha
Gritando, como no vento
Fazia a sua cabrinha.
13
Agora olhava sozinho
Até que a Gerusa foi
Saindo sem dizer “oi”
Da rede e do corpinho.
14
Tuím a acompanhou
Na rede até o outeiro,
No solo que se elevou
Só para aquele canteiro
15
De cruzes todo brotado
Como peito cravejado
Das balas de um destino
De sentido insuspeitado.
16
Ali já estavam dormindo
Mais de um irmãozinho,
A mãe e até o paínho,
Uma tia e o Laurindo,
17
Moço que fora um irmão
Para o Tuím por um tempo
E deixara o convento
Pra cuidar de sua mão
18
Que o Tuím machucara
Ao brincar c’uma sovela
Enferrujada e ficara
Perto de ficar sem ela.
19
De algum modo pegou
No moço a infecção.
Tuím perdeu um irmão,
O outeiro outro ganhou.
20
Agora Gerusa ia
Ali dormir ao seu lado
Pois co’aquela companhia
Ninguém ficava acordado.
21
Mas aquela plantação
Prometia só crescer,
Havia ainda um irmão
Mais velho para perder
22
E uma tia que, coitada,
Vagava sem energia
Sonhando meio acordada
Com um vaqueiro que havia
23
Que ela pensava um barão
Vestido com uma couraça
Que era de aço sem jaça
E não de couro o gibão.
24
Tuím então se jurava
Sair do lar e partir
Antes que fosse dormir
No outeiro que o esperava.
25
Voltou até a tapera
Juntando as miserinhas:
O seu pião de madeira,
O canivete e as bolinhas,
26
Enterrou-as no terreiro
Afastando o espevite
De Anaís que um certo cheiro
De cola fazia apetite.
27
Depois calcou o lugar
Para só ele encontrar
E reentrando fez a trouxa
Com quase nada, até frouxa.
28
Pendurou-a no ombro
E passou pela cabrinha
Que o olhava sem assombro
Como se fosse advinha
29
Enquanto ela era olhada
Num mesmo olhar que continha
O casebre e a cabrinha,
Com a cabeça voltada
30
Andando pra frente ia
Com um andar que ninguém vira.
Co’esse jeito parecia
O andar do Curupira.
31
Até que afinal virou
O rosto também pra frente
Co’aquele passo de gente
Que o destino enfrentou.
32
Andando naquela planura
Sem fim, que o engolia
Para quem somente o via
De uma mesma postura
33
Pois sua estória não ia
Acabar na travessia:
O pequeno sertanejo
Seria agora um andejo
34
E haverá de chegar
Na são Paulo, capital,
Pra de novo começar
Uma saga emocional
35
Que havera de vencer
Porque já nascera forte
E sendo cabrinha do Norte
Tinha o que dar e vender.
FIM
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