sexta-feira, 25 de abril de 2008

Romance da donzela que foi ao rio


( Cordel de autoria de Guilherme de Faria )

1
Ouça-me agora seu moço
Os versos que vou cantar
Que fazem aqui o esboço
Do que já não se ouve falar:

2
Tempo em que mulher dama
Não era de se pagar
E coronel era rei
Sem precisar coroar

3
Foi nesta casa em ruína
Que nasceu a heroína
Do caso que vou contar
Se a lembrança não faltar.
4
Bela como uma afronta
Que cresceu sem avisar,
Quando se viu tava pronta,
Já não dava pra evitar .

5
Andava pela caatinga
Como se fosse um pomar
Corria pela restinga
Sem precisar se calçar.

6
Não tinha medo de espinho
Com o seu fino pésinho
Que nem parecia andejo,
Mesmo sendo sertanejo.

7
Sem as mazelas banais
Dos outros simples mortais
E das donzelas comuns
Não soltava nem os puns.

8
Respirava liberdade
Com toda aquela alegria
Que desde a mais tenra idade
Quase a todos contagia.

9
O seu pai bom cavaleiro
Não logrou botar cabresto
Na potranca por inteiro
Pois lhe faltava um pretexto. .

10
Mas isso não preocupava
Porque de tanta inocência
Por mais que pererecava
Nunca perdia a decência

11
E tomar banho de rio
Totalmente ao natural
Era coisa tão normal
Que o povo fez que não viu.

12
Mas aconteceu que um dia
Chegou aqui nesta banda
Um malungo que não via
As coisas como se manda.

13
Para esse moço vilão
Nada era tão sagrado
Que lançava logo mão
Do que quer de seu agrado.

14
Quando seus olhos pousaram
No seu talhe de princesa
Eles logo faiscaram
Com lampejos de avareza.

15
Pensou num saco de ouro
Que não era de besouro
Nem de lenda, com certeza,
Mas de venda de beleza.
16
Pois a pele da beldade
Por centímetro quadrado
Era dólar e mais metade
Pelas taxas do mercado.

17
Bastava ser alcançado
Carregar nesse navio
O que de tão leve, pesado
Parecia um desafio .

18
Botou-se pois tão no fio
De cabelo tão penteado
Que logrou do pai da moça
Se tornar um convidado.

19
Na conduta desonrosa
Parecia interessado
Não na moça, mas na prosa
Do cavaleiro afamado

20
Não parando de dar corda
Pra ele estar lisongeado
Como quem não acorda
Do seu sonho acordado.

21
E depois de tantas loas
Lá pela hora das broas
Era tão persona grata
Que afrouxou a gravata.

22
Já estava aprovado
Como moço educado
E aceitável pretendente
Que até palitou o dente.

23
Só mirava a promissora
Que tinha o olho abaixado
Como uma discreta moura
Que passeia no mercado.

24
Mas conseguiu o safado
Um certo encontro marcado
Com bilhete que mostrado
Foi bem depressa rasgado

25
Levantando no outro dia
Embora estivesse fria
Para um banho de novilha
Pediu licença à família.

26
Correu pra beira do rio
Pondo o corpo desnudado
Como era seu feitio
Mesmo sem ter combinado

27
O moço, como esperado,
Meio escondido no mato
Ficou olhando pasmado
E com ar estupefato.

28
Mas tendo se aproximado
Com a guia de contrato
Chafurdando pela lama
Ele se pôs em contato,

29
Confiante no seu taco,
Falando de casamento,
Jogando no mesmo saco
Virtude e comprazimento

30
Com o canto da sereia
Enredou a sua teia
Como se fosse a aranha
Tecendo na lua cheia.

31
A moça saiu pelada
Para ser logo abraçada
E ali na areia, de fato,
Assinou o tal contrato
32
Então, montando no jegue
Que já estava desatado
Foi andar no chão rachado,
E o seu destino prosegue.

23
Foi sofrer vicissitude
Andando por todo lado
Com a perda da virtude,
Que ela havia abandonado.

34
Mais tarde foi vista até
Andando de braço dado
Saindo de um cabaré
Com um homem fardado.

35
Outros dizem ainda
Que agora tá mais linda
Porque tem o olho pintado.
E o lábio bem encarnado

36
E eu que a vi correndo
Pro rio sem ter combinado,
Quando andava descalça
E não usava nem calça,

37
E seus seios na corrida
Nem careciam sutiã
E quando qualquer investida
Parecia coisa vã,

38
E aquela ninfa morena
Ainda tinha este seu fã,
Ainda não causava pena,
Ou platéia de divã...

39
Olho a vida e cabeceio
Meditando com pesar
Em que quando falta o freio
Se vai da sorte pro azar.

40
E à fronteira do penar
Se chega sem muito esforço...
Pode ir agora, seu moço
Não vou mais lhe segurar.



FIM



20/01 2002

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