segunda-feira, 16 de junho de 2008

Romance do Cavalo de Pau


Romance do Cavalo de Pau

Cordel de autoria de Guilherme de Faria

1
Seu moço, preste atenção
Para ouvir a narrativa
Que tira do coração
A lembrança em carne viva.

2
Existiu aqui, seu moço
Um rancho c’um umbuzeiro
E mais adiante um poço
Cercado sob um telheiro.

3
O poço dá pra se ver
Mas está envenenado
Por isso tome cuidado
Não queira dele beber.

4
Agora é um lugar medonho
E o bacurau traiçoeiro
Faz o seu ninho tristonho
No toco do umbuzeiro.

5
Pouco restou na memória
Da gente da região
Ainda que eu reconte a estória
De Dorinha e Sebastião.

6
Só eu chamo a atenção
Pra a desgraça do rapaz
Que de tristeza é capaz
De ter sido um campeão.

7
Tanto, moço, que de noite
Eu não voltaria aqui
Nem pr’um prêmio de pernoite
Pelo que pressinto e vi.

8
Pois quem morre de infeliz
Custa muito a nos deixar,
Assim é que o povo diz
Quem sou eu pra duvidar.

9
Mas vou lhe contar, seu moço:
Sebastião lidou quietinho
Pois só não faltava o esforço
Para erguer o seu ranchinho.

10
Tendo freqüentado escola
Tinha veia de poeta
E, se dava na veneta
Até tocava a viola.

11
Parecia um cantador
Apesar dos “pé quebrado”
Mas pondo a viola de lado:
“Vamo trabaiá, doutor”.

12
Dorinha era moça das boas
Filha de um professor
Que veio das Alagoas
Pra ensinar de favor.

13
Esse encontro fez brilhar
Mais a lua e as estrelas
Querendo ao povo mostrar
Que fazia o gosto delas.

14
Depois da ida ao cartório
Teve a festa do casório
E o pai dela emocionou
Co’os cordéis que recitou.

15
Mas o povo entendeu mal
Estranhos versos de briga
Sobre um cavalo de pau
Com soldado na barriga.

16
Com rojão a espocar
E a sanfona ainda rangendo
Os dois se foram pro lar
Num carro de boi gemendo.

17
Aquele gemido distante
Me soou meio agourado.
Aquilo foi o bastante
Pra me deixar preocupado.

18
Mas não se ouviu mais estória
Daquele casal um bom tempo
Povo feliz: sem história
Povo infeliz: muito evento.

19
Mas a Sina faz pirraça
Gerando a alma danada
Que conspirando a desgraça
Sai da sombra, iluminada

20
Na forma de um forasteiro
Muito bonito e letrado
De verso mais afiado
Do que o seu hospedeiro.

21
Trazia viola e palavra:
Armas de repetição
Despejando, em sedução
Versos de sua lavra.

22
Acolhendo o forasteiro
Sebastião armou sua rede
Na varanda, de primeiro:
Noite quente, dava sede.

23
Mas depois de um dia inteiro
Achando coisa mesquinha
Convidou o forasteiro
A armá-la na cozinha.

24
Foi aí, ó minha mágoa
Que a pobre casa caiu
Dorinha foi beber água
Na cozinha e o moço viu.

25
Dormindo na rede armada,
E ficando deslumbrada
Achou encanto no tal
Em seu sono de lacrau.

26
No belo rosto talhado
E nas suas mãos potentes
Que prometiam presentes
De predador disfarçado.

27
Antes que o dia acabasse
E o bacurau voasse
Já corriam os fujões
Nas trilhas destes sertões.

28
Sebastião tava lenhando
Pra sua hospitalidade
Bateu-lhe estranha saudade
O coração apertando.

29
Procurando por quem ama
Só encontrou, no momento
Os restos do casamento
Pela grinalda na cama.

30
Correu em volta gritando
No raio de uma légua
Sem dar ao peito uma trégua
O cabelo arrepelando.

31
Então, sentando, chorou
Até que o peito secou
Como aquele rei do Ida
Sobre a aldeia perdida.

32
Seu moço, vamos andando
Que a tarde tá despencando
E se a noite nos pegar
Tenho medo de avistar

33
O que o povo comenta:
Um cavalo de madeira
Rolando como tormenta
Sobre as cinzas e a poeira

34
Deste rancho destroçado
Queimado até o chão,
E do poço envenenado
Nessa noite de aflição.

FIM

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