quarta-feira, 19 de novembro de 2008


Romance do Leito Seco

Cordel de autoria de Guilherme de Faria


1
Seu moço, aqui neste leito
Outrora corria um corguinho
Que ainda trago no peito
Com aquele barulhinho

2
Fluindo nos pedregulhos,
Bom pra dormir e sonhar
Levando consigo os entulhos
Da memória e do penar.

3
Construí ali meu rancho
Onde um toco ainda se avista.
Só não era muito ancho
Que sempre fui realista.

4
A Raquel transpôs a porta
Bem no dia do Divino
Por isso a memória aporta
Toda vez que bate um sino

5
E marco dia por dia
A distancia da partida
E a lembrança da alegria,
Minha ventura perdida.

6
Trabalhei como Jacó
Sete anos de vaqueiro
Pra comprá-la, veja só,
Do seu pai, um merceeiro.

7
Dei a ele meu gibão
Meu cavalo e as perneiras.
Pra me prová, sêo Labão
Queria até as esteiras,

8
Meu laço de couro trançado
Minha sela e meu facão;
Queria até o esperado
Primogênito varão

9
Pra o distrair na velhice.
Aceitei e abri mão.
Qualquer coisa que exigisse
Eu cedia por paixão.

10
Nossa festa então juntou-se
Com a festa do Divino
E era justo que assim fosse
Nosso sonho era o mais fino.

11
Nunca se viu casal
Mais feliz nesse caminho
Vestida branca de cal
E eu no meu terno de linho.

12
Seus olhos como turquesas
Cintilavam nessa noite
De tantas fogueiras acesas
Na memória, como açoite.

13
O sanfoneiro era tão
Danado de bom, coitado,
Que demoramo um tempão
Junto ao povo convidado.

14
Afinal entramo em casa
Preparada como um ninho
Na porta havia um raminho
De arruda, que agora abrasa.

15
Pois que a pobre Raquelinha
Não havera de acordar
Do seu leve ressonar
Quase de manhãzinha.

16
Seu coração foi parado
De alegria e emoção
Nesse encontro destinado
Sobre o Raso de um colchão.

17
Seu coração em delírio
No seu peito delicado
Branco, branco como um lírio
Não cabia enjaulado

18
Buscando logo voltar
Aos doces montes do Hebrão
Que era o vero Sertão
Da raça crepuscular.

19
Assim foi com antepassadas
E sua mãe, desditadas,
Mas não antes de embuchadas,
De paridas, festejadas,

20
Mas não sem semeadura
E da colheita, a fartura
Que o ninho da gente espera
Pra deixar de ser tapera.

21
Só soube disso, atrasado,
Quando fui cobrar de golpe
Pelo menos meu Pintado
Pra sair doido, a galope

22
Por este mundão de Deus
Ou do Diabo, ou dos dois,
Para rever estes céus
Só vinte anos depois.

23
O riacho está sequinho,
O rancho desvaneceu
Queimado por um padrinho
Na noite em que sucedeu,

24
Quando uns gritos de infeliz
Ecoaram nesta pedra
E assombraram esta raiz
Que no leito seco medra.

25
Deixei a vida de lado,
Deixei até minha fé,
Desacreditei do fado
Desacreditei do amor até

26
Moço, agora vou partir
Em direção ao Levante
Pra de novo prosseguir
Tal qual o Judeu Errante...


FIM

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