sábado, 29 de novembro de 2008
Romance da Noite de Guarda (cordel de Guilherme de Faria)
Cordel de autoria de Guilherme de Faria
1
Noite clara sobre o campo,
Uma noite para rede,
Para oiá pra pirilampo
E beijá pra matá sede.
2
Dava pra ver o amarelo
Das espigas ao vento
Mas longe do desvelo
Do abraço da Adivento.
3
Nós tava no milhará
Eu mais Ezequié
E ainda dois camará
A serviço do coroné.
4
Um Chamado Dijaniro
E outro, o Zé do Pinho
Que eu conhecia pouquinho.
O primeiro mal refiro.
5
O João da Cunha de nome,
Era o nosso patrão,
Grão-chefe deste sertão,
Poderoso, de renome.
6
Nóis tinha de montar guarda
Na divisa, ali, cercada.
Arami vai, arami vorta
Na divisa c’uma horta
7
Do coroné Ludugero,
Um Átila deste sertão
Que sem perguntar se é vero
Não respeitava mourão.
8
A divisa já matava
Há mais de treis geração:
Haja quem raso cava,
Haja tiro, haja mourão.
9
A hora eu via não
De vortá para a famía.
Home neste sertão
Só na briga tem valia.
10
Eu tinha deixado a Divento
C’os menino e embuxada.
Tudo magro e catarrento
Esperando a farinhada
11
Mais feijão e rapadura
Se desse certo a empreitada
E sobrasse da fartura
Da festa da jagunçada.
12
Aí a primera bala
Zuniu fininho “pium”
Que nem marinbondo fala
Na oreia de qualquer um.
13
Daí a poco o milhará
Estralava feito espinho
Quando o fogo vai pegá
Para abrir nosso caminho.
14
Era bala de lá
E outra bala de cá.
Óio e vejo o Dijaniro
Garrado num pé de mio.
15
De repente entendi
Que ele já num tava ali:
Devagarinho tombando
Como que fosse rezando
16
Com as mãos em oração
Cum vela de devoção
Que era só uma espiga,
Sua derradeira amiga.
17
E tombô teso então
Levantando a poeirinha
Que somente eu vi, no chão,
Que “obeservação” eu tinha.
18
Então senti o ferrão
Do marimbondo na coxa.
Ajoelhei naquele chão
Pra rezá pra vaca moxa,
19
Quer dizê: sem nem lembrá
De uma boa oração,
Que hora era de atirá
Ou deitá naquele chão.
20
Mas Zé do Pinho chegô
Na hora e me arrastô
Pelo milhará afora
Como se eu fosse uma tora.
21
C’uma força de anjo
Amparava no sovaco
Este tamanho marmanjo
Que tava ali feito um saco.
22
E abrindo trilha a facão
Tentava chegá no meio
Do curral pra ter ação
E respondê tiroteio.
23
Acabô pondo nas costas
Este traste aqui que eu era.
O home tava uma fera
E atirava inté as bostas
24
Das vaca que tava ali
Naquele curral sangrento,
Mais o sangue deste aqui
Que já tava meio lento.
25
Mas eu tinha (e sou certeiro)
Minha espingarda na mão
E chegando no chiqueiro
Deitamo atrás de um capão
26
Enorme, que amortecia
As bala na sua gordura.
Nunca vi dois caradura
Fazê isso c’uma cria!
27
O bicho grunhiu de dá dó
Mas depois do berro ouvir
Pudemo então distinguir
O que era tiro só.
28
Fazendo fogo cerrado
Atiramo adoidado
Por mais de uma hora ali
Num cheiro que nunca vi,
29
Atolado ali na merda,
No sangue e na gordura,
Deitados como quem herda
De tiros essa fartura.
30
Até os jagunços feros
Do coroné João da Cunha
Expulsá os ludugeros
Do coroné dessa alcunha.
31
Saímo então mais sujo
Que uma mula embosteada
No meio da gargaiada
Da jagunçada do cujo.
32
O cumpadre Zé do Pinho
Tinha de sê o padrinho
Dessa minha fia muié:
Eleussuína da Fé
33
Que nasceu naquela noite
De tiros como um açoite.
Eu mais o Zé do Pinho
Tivemo esse gostinho.
34
Agora que tamo em cima
Vamo chamá a Dafé
Que é nome bonito e rima
Para servir um café.
FIM
28/02/2003
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