sábado, 14 de março de 2009
Romance do Coronel e a Donzela
Capa do folheto de cordel "Romance do Coronel e a Donzela",com xilogravura de Guilherme de Faria
1
Pr’essa seleta audiência
Vou contar quase uma lenda
D’uma donzela Laudência
Que vivia na fazenda.
2
Prometia desde a infância
Aquela beleza rasgada
Que iluminou essa estância
Como vela encomendada.
3
Correndo da cozinha
Pro terreiro e pro cercado
Pra tratar cabra e galinha
E voltando pro sobrado,
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Dormia com sua tia
E também com uma prima.
No catre ela se espremia
Sem lhes perder a estima.
5
Os grandes leitos da casa
Viviam sempre vazios
Como se tivessem brasa
Ou se fossem muito frios,
6
Que o coronel Zé Simão
Tinha munheca de vaca
Não repartindo o pão
Para não gastar a faca.
7
Quando a pobre arrumava
Esses leitos infecundos
A coitadinha deitava
Neles por uns segundos,
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Fingindo-se adormecida
Numa cama de dossel
Sonhando uma outra vida
Debaixo de um outro céu
9
Onde, princesa encantada
Ela seria levada
Por um príncipe vaqueiro
Pra longe desse terreiro
10
Para um rancho acastelado
Cercado de muito gado,
De vaquinha com torneira
E galinha poedeira.
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Pulava então, assustada,
Com medo de ser flagrada
Em crime de fantasia
De beleza ou monarquia.
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Mas Laudência cresceu
Botou corpo e “embeleceu”
Foi ficando apetitosa
Coisa muito perigosa,
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Quer dizer, desabrochou,
Sua beleza então ficou
Um tanto meio ostensiva
Doendo na carne viva
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Do desejo do patrão,
O coronel Zé Simão
Que há muito enviuvara
Sem fazer florir a vara
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Como o José da escritura,
Que este José caradura
De santo não tinha nada
E sua vida era “privada”...
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Mas a donzela expedita
Quando servia na sala
Cafezinho pr’a visita,
Não parecia vassala.
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Era sempre confundida
Embora simples vestida,
Pois que se vê pelo pé
Quem é nobre ou pangaré.
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E a donzela Laudência
Que morava no porão
Tinha toda a aparência
De uma filha de patrão:
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Os tornozelos fininhos
E delicados pesinhos
Que pisavam no assoalho
Como gata no borralho.
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Mas o tempo deu a Laudência
Uma cota de seis meses
De paz, depois dos seus treze,
Que o patrão tinha urgência.
21
Como a tia vigiava
E era boa cozinheira
O patrão diz que casava
Ou fazia companheira.
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É que o velho apaixonou-se
Ficou zoró e babou-se
Coma idéia de colher
A flor de tanto prazer.
23
Foi só casar decidir
Pra seu filho retornar
À casa para exigir
O que era seu pra herdar
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Já que a mãe é que era rica,
Filha de um general
(sua morte não se explica
e ainda cheira muito mal).
25
O filho era um doutorzinho
Criado na capital,
Não se dava com o paínho
Ou se dava muito mal.
26
Arretado de bonito
Botou o olho em Laudência
Cuja bela aparência
Aumentou com o espevito
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Pois a moça nele viu
O príncipe do seu sonho
E embora fosse bisonho
Esse amor evoluiu.
28
O rapaz reinvindicava
A fazenda e algo mais:
Três quartos dos animais,
Que com a moça se casava.
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A casa então estalava
Com o ódio que exalava
Dessas paredes fatais
Com pai e filho rivais.
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No meio dessa tensão
A tia da pobre Laudência
Fraquejou do coração
E fez ver a sua ausência.
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Pai e filho amparavam
Até o cemitério
A moça e lhe segredavam
Promessas de refrigério.
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Mas água caiu demais
Sem esfriar o rancor
Desses corações rivais
Divididos pelo amor
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Dessa moça pueril
Que nunca na vida viu
A verdadeira nobreza
Que já tava em sua beleza.
34
Ela então se decidiu
Pelo filho do patrão
Um bom noivo nele viu,
Que era moço e bonitão.
35
Resolveram então fugir
Para poder se casar
Que a onça estava a rugir
E ameaçava saltar.
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Mas não chegaram direito
Na porteira da fazenda
Que o velho já tinha feito
Pr’a jagunçada a encomenda:
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Surgiram de todo lado
E abateram à paulada
O cavaleiro encantado
E a moça foi levada
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De volta pro casarão
E trancada no porão
Lacrado durante o dia
Como o lacre que ainda havia.
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O povo da região
Diz que o velho coronel
Descia àquele porão
De noite com um farnel
40
E subia ao amanhecer
Pra na varanda sentar
Olhando o alvorecer,
Tentando purificar
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A sua alma sombria
Que qual carcará vigia
Seu reino desse sertão
De trevas e solidão.
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Agora peço perdão
A esse meu auditório
Que com tanto palavrório
Perdi a medida e a mão
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Contando causo escabroso
Que é melhor nem ser contado.
Quem cala, diz o ditado,
Traz presente valioso.
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Mas sendo um conto de fada
Posso concertar um pouco
E dizer que tava louco
Com a versão apresentada,
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Pois o moço não morreu:
Tava ferido e viveu
Escondido na palhoça
De um casal que o recolheu
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E voltou daquela roça
No seu cavalo Himeneu
Chegando mesmo justinho
Para salvar o selinho.
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O coronel que era um bruxo
Deu um estouro e babau,
Mas ainda deu-se o luxo
De virar um bacurau
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Que vive cantando agouro
No mourão dessa porteira
Para o fado duradouro
Do amor dessa parelha
49
Que agora vive contente
No casarão povoado
De crianças adoidado,
Com até cama patente.
FIM
18/02/2003
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