sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

ROMANCE DO NAVIO ( Cordel de Guilherme de Faria)





Romance do Navio
(cordel de Guilherme de Faria)

1
Cumpadre, estou construindo
Este navio há uma data
Uns trinta anos, mentindo,
E quarenta, mais exata.

2
Porque a madeira é minguada
E quando chego co’a popa
A proa já tá empenada
Deste sol que não me poupa.

3
Mas sei também que não há
De ficar pra sempre assim
Encalhado na areia sem fim
Dessa seca terra má.

4
É só esperar a enxurrada
Que na certa há de subir
A prova é essa conchaiada
Espalhada por aí

5
“O Sertão vai virar mar”
Já dizia o Conselheiro
É questão de esperar
Trabalhando o dia inteiro.

6
Larguei os filho e a Cida
Mas um inté ajudou
Por uns três anos, na lida,
Mas depois me abandonou.

7
Sonho é dificultado
De sonhar junto e unido
A gente que vive acordado
Pretensioso e presumido

8
Prefere ter esquecido
O que a alma diz no ouvido;
Não põe fé, nem põe sentido
Nesse mundo adormecido.

9
Mas porque havera Deus
De fazer ele mais forte
Do que a gente sob os céus
Acordada, mas sem sorte?

10
Nunca vou acreditar
No arrastar dessa vidinha.
Se ainda não veio o mar
Não é culpa sua nem minha.

11
Nem é culpa do meu sonho
Mas dessa desesperança
Do pobre povo bizonho
Que o sentido não alcança

12
Deste meu forte sonhar
Que me mantém antenado
Com o mar distanciado
Que ainda há de voltar.

13
Uma vez na areia vi
Grande máquina pintada,
Enterrada até aqui,
Muito bela e destroçada

14
No sertão do Cariri
Topei com ela, assustado.
O rabo tava enterrado
Mas na proa eu inté li

15
O nome daquilo ali
Inda que de letra eu manque:
Era Anauque ou Ananque
Coisa que desentendi.

16
Tive inté necessidade
De oiar bem mais de perto
Com muito medo, é verdade,
Mas co’aqueles óio esperto.

17
Quando o rabo puxei
Consegui, desenterrei,
Quase caí, desmaiei
Vendo aquele leque guei:

18
A miríade de olhos
Azul e verde irisado
No verde tão salpicado
Como no mar os abrolhos.

19
Tinha umas asas também
Destroçadas, sem costura,
Mas pela envergadura
Devia voar muito bem.

20
Depois o povo me disse
Que houve inté quem o visse
Voando neste sertão
Como a nave do Gusmão,

21
A Passarola do padre
Você sabe, meu cumpadre,
Um louco que aqui vivia
No tempo da minha tia.

22
O povo então intuiu
Que o doido que construiu
O Pavão, também morreu
Na queda em que faleceu.

23
Mas antes esse Nordeste
Espantou de Norte a Leste
Deixando bom material
Pra cordel e pra jornal.

24
Que virou inté cantiga
Que apesar de meio antiga
Embala hoje os menino
E deu cordel muito fino.

25
Assim também meu navio
Há de vagar no Sertão
Porque quem o construiu
Pode enfrentar vagalhão.

26
Eu reclamo que essa gente
Já me chama de Noé
Pois meu nome simplesmente
Não passa de Manoé

27
Não tenho bode e cabrinha
Para botar de casal
Nem o galo e a galinha
Nem qualquer outro animal.

28
O jegue que me ajuda
Carregando essa madeira
O seu destino não muda,
Nunca teve companheira

29
Mas eu e ele sozinho
E mais a nossa carranca
Vamos espantar o povinho
Que até hoje não se manca

30
Dos seus erros e entraves
E da tal desesperança
Um dos pecados mais graves
Que marca desde criança.

31
Pois quando a água voltar
Vai redimir o Sertão
Para quem sobrenadar
Seja navegante ou não.

32
E quando a água baixar
Quem viver reviverá
Andando sobre um lugar
Mais verde que Chão-de-lá

33
Onde o aceno da mão
Deixando cair semente
Vai fazer se abrir o chão
Para a colheita da mente,

34
Que tudo se passa somente
Nesse reino encantado
Da alma, ente encarnado,
Que assim vive eternamente.

35
Agora, moço, s’imbora
Para o trabalho assumir
Pois nunca se sabe a hora
Em que a maré vai subir.

FIM

26/05/2006

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