segunda-feira, 30 de junho de 2008

Romance da Dívida Herdada


(Cordel de Guilherme de Faria)



1
Pra vocês que aqui vieram
Minha estória vou contá.
Sou daqueles que puderam
Pra sua terra voltá.

2
Digo isso sem vaidade
E também aliviado,
Pois me parece verdade
Que ludibriei o Fado.

3
Este episódio soturno
Sempre me volta à mente,
Mormente no fim do turno,
E brota tal qual semente.

4
Saímo com a boiada
Bem cedo de madrugada,
Pensando de antemão
Só voltá pro São João.

5
Arnésio,eu e Justino
E mais Taioba, o negrão,
Sabendo o nosso destino
Ou ficando na ilusão.

6
Nóis devia levá gado
Pelo mais curto caminho,
Pru mode cada boizinho
Não chegá muito esfalfado.

7
Mas,ai,que o trecho corrido
Havera de se mostrá
O mais longo e mais sofrido
De um peão cavalgá.

8
Arnésio desde o cumeço
Me olhava pelo avesso
Dum jeito que nunca vi
E que até desentendi.

9
Seu ódio se fez visíve
Naquela travessia
E eu que nem sou sensíve
Achei que não merecia.

10
Como quero coisa clara
Lhe perguntei, na parada,
Direto mas com rodeio,
Que sou peão boiadeiro.

11
Mas desconversou depressa
Escabreando no laço
Como potro que começa
Dando o maió cansaço.

12
Ódio que corre de esguelha
Esse é o mais perigoso
É no apertar da cernelha
Que se vê peão famoso.

13
Saía lacrau e aranha
Todo bicho peçonhento
Debaixo da minha sela
Quando dormia ao relento.

14
Será que era tudo sina?
Tava era muito suspeito.
Alguma mente assassina
Trazia rancor no peito.

15
Resolvi tomar avanço
Chamar ele frente a frente
Disse: Arnésio, deixe o ranço
E jogue limpo, ó xente!

16
Me diga logo o teor
Primeiro, desse rancor
Depois vamo resolvê
Isso aí no vamovê.

17
Escolha arma e serviço
Ou aceite minha desculpa
Se fôr um caso de culpa
Mas, home, pare com isso!

18
Arnésio me olhô fundo
Pela primeira vez
E disse com ar profundo
Como quem compra uma rês:

19
Argemiro, com quem lida?
Sou o Nésio, do Lajedo.
Você salvô minha vida
Como se fosse folguedo.

20
Como um pequeno aporte
Duas vezes me salvô
Eu tava jurado de morte,
O assassino ocê matô.

21
De um galho me arrancô
Sobre o abismo e me deixô
Sempre sem dar importança
Como a um cão ou criança.

22
Posso mais arcar não
Com gratidão humilhada
Como a que me foi legada
Pela sua prontidão.

23
Enquanto ocê tiver vida
Eu me sinto endividado
E até amaldiçoado
Pela obrigação devida.

24
Enquanto ocê viver
Eu só me sinto morrer.
Me desobrigue, Argemiro,
Ou morra ou me dê um tiro!

25
No crepúsco então paramo.
Nossas arma preparamo.
Enquanto a sombra descia
As nossas arma subia.

26
Justino e Taioba de prova
E nos dois bem concentrado
Com dez passo bem contado,
Estampido e odor de porva.

27
Arnésio no chão deitado
Com um um sorriso me fita:
Ele tava libertado
Da obrigação maldita.

28
E eu tinha começado
A arcar com o peso da minha
Tendo em seu sangue herdado
O dever que ele me tinha.


FIM



20/02/2002

sábado, 21 de junho de 2008

Romance da Volta do Reino



Cordel de autoria de Guilherme de Faria

1
Neste vale acachapado
Sob este sol inclemente
Um ranchinho apetrechado
Foi ficando decadente

2
Com um cercado de cabras
O poço sob um telheiro
Um paiol de espigas magras
E um pobre galinheiro

3
Agora já faz dois anos
Que foi de todo arrasado,
Da madeira espoliado,
Por um povo de ciganos.

4
Que por aqui passava
Como um rastro de fumo
Mas que nem erva deixava
Como o cavalo do Huno.

5
Mas é que o arrendador
Já o tinha abandonado.
Esse pobre morador
Tinham ouvido o chamado

6
De um taumaturgo profeta
Que lhe tinha acenado
Com a salvação como meta
De um Reino destinado

7
Onde o rei Dom Sebastião
Todo de aço armado
Urdia a volta e o primado
Do seu Reino do Sertão.

8
O Dião largou a enxada,
Com a Letícia e a filharada
( Esse o casal conclamado
Para fundar o reinado )

9
Deixou pra trás o que tinha
E que era muito pouco
Pois só tinha uma galinha
Magra demais pro choco

10
Que ovos de ouro não bota
Quanto mais os de comer,
Que quando um sonho desbota
Não há mais o que fazer.

11
Seguiram o povo doído
Antes que eles também
Tivessem o corpo moído
Pela fome e o desdém.

12
Dizem que a procissão
Percorreu todo o Sertão
De Pernanbuco e Alagoas
Cantando hinos e loas

13
E fazendo uma espiral
Na Pedra do Reino chegou
Onde seu rastro, afinal,
Na areia se apagou.

14
Nunca mais foi avistado
Nem por quem me foi contado:
Um sujeito bem trajado
Sentado ali ao meu lado

15
Me deu notícia do Dião,
De Letícia e os bacuri,
A mim, que a recepção
Fidalga lhes conheci.

16
Na pobreza como um rei
Em sua hospitalidade
Como prova de bondade,
O que nunca esquecerei.

17
O homem me descreveu
A cena sem que eu pedisse
E ela me pareceu
Como se eu próprio visse:

18
“ Na qualidade de guarda
Na divisa eu estava:
Percebi a espingarda
Que o Dião carregava

19
A dez passos contados
Da Letícia e dos filhinhos
Ainda mais depauperados
Nesse deserto sozinhos.

20
Achei melhor divisar
À distância que o Dião
Dava medo de se olhar
Ereto que estava tão

21
Pra quem tinha andado tanto
Girando neste sertão
Com o olhar desvairado
De quem já viu Sebastião.

22
Por isso, moço, desista
Desse casal exaltado
Que é provável que ainda insista
No seu sonho acordado.

23
Nesta terra seca e dura
O coração que tem fé
Encontra sempre a abertura
Do Reino da Alta Sé.

24
Que vem subindo mui lento
Neste solo abençoado,
Por cima bem disfarçado,
Aguardando o Advento”

25
“Da grande transformação:
O Sertão mar vai virar
Pr’ onde a gente vai mudar,
Que o mar vai virar Sertão.”

26
“Mel e leite fluirão
Sob um sol que não escalda,
Que abrirá o Pavão
Como cometa sua cauda”

27
“Para a noite constelar
Co’aquelas estrelas-olhos
Como no mar os abrolhos
Voando sem assustar

28
As crianças em seu berço,
Que ele virá mais cedo:
Co’as velhas puxando o terço
Nas novas noites sem Medo!”


FIM

18/ 08/2002

segunda-feira, 16 de junho de 2008

Romance do Cavalo de Pau


Romance do Cavalo de Pau

Cordel de autoria de Guilherme de Faria

1
Seu moço, preste atenção
Para ouvir a narrativa
Que tira do coração
A lembrança em carne viva.

2
Existiu aqui, seu moço
Um rancho c’um umbuzeiro
E mais adiante um poço
Cercado sob um telheiro.

3
O poço dá pra se ver
Mas está envenenado
Por isso tome cuidado
Não queira dele beber.

4
Agora é um lugar medonho
E o bacurau traiçoeiro
Faz o seu ninho tristonho
No toco do umbuzeiro.

5
Pouco restou na memória
Da gente da região
Ainda que eu reconte a estória
De Dorinha e Sebastião.

6
Só eu chamo a atenção
Pra a desgraça do rapaz
Que de tristeza é capaz
De ter sido um campeão.

7
Tanto, moço, que de noite
Eu não voltaria aqui
Nem pr’um prêmio de pernoite
Pelo que pressinto e vi.

8
Pois quem morre de infeliz
Custa muito a nos deixar,
Assim é que o povo diz
Quem sou eu pra duvidar.

9
Mas vou lhe contar, seu moço:
Sebastião lidou quietinho
Pois só não faltava o esforço
Para erguer o seu ranchinho.

10
Tendo freqüentado escola
Tinha veia de poeta
E, se dava na veneta
Até tocava a viola.

11
Parecia um cantador
Apesar dos “pé quebrado”
Mas pondo a viola de lado:
“Vamo trabaiá, doutor”.

12
Dorinha era moça das boas
Filha de um professor
Que veio das Alagoas
Pra ensinar de favor.

13
Esse encontro fez brilhar
Mais a lua e as estrelas
Querendo ao povo mostrar
Que fazia o gosto delas.

14
Depois da ida ao cartório
Teve a festa do casório
E o pai dela emocionou
Co’os cordéis que recitou.

15
Mas o povo entendeu mal
Estranhos versos de briga
Sobre um cavalo de pau
Com soldado na barriga.

16
Com rojão a espocar
E a sanfona ainda rangendo
Os dois se foram pro lar
Num carro de boi gemendo.

17
Aquele gemido distante
Me soou meio agourado.
Aquilo foi o bastante
Pra me deixar preocupado.

18
Mas não se ouviu mais estória
Daquele casal um bom tempo
Povo feliz: sem história
Povo infeliz: muito evento.

19
Mas a Sina faz pirraça
Gerando a alma danada
Que conspirando a desgraça
Sai da sombra, iluminada

20
Na forma de um forasteiro
Muito bonito e letrado
De verso mais afiado
Do que o seu hospedeiro.

21
Trazia viola e palavra:
Armas de repetição
Despejando, em sedução
Versos de sua lavra.

22
Acolhendo o forasteiro
Sebastião armou sua rede
Na varanda, de primeiro:
Noite quente, dava sede.

23
Mas depois de um dia inteiro
Achando coisa mesquinha
Convidou o forasteiro
A armá-la na cozinha.

24
Foi aí, ó minha mágoa
Que a pobre casa caiu
Dorinha foi beber água
Na cozinha e o moço viu.

25
Dormindo na rede armada,
E ficando deslumbrada
Achou encanto no tal
Em seu sono de lacrau.

26
No belo rosto talhado
E nas suas mãos potentes
Que prometiam presentes
De predador disfarçado.

27
Antes que o dia acabasse
E o bacurau voasse
Já corriam os fujões
Nas trilhas destes sertões.

28
Sebastião tava lenhando
Pra sua hospitalidade
Bateu-lhe estranha saudade
O coração apertando.

29
Procurando por quem ama
Só encontrou, no momento
Os restos do casamento
Pela grinalda na cama.

30
Correu em volta gritando
No raio de uma légua
Sem dar ao peito uma trégua
O cabelo arrepelando.

31
Então, sentando, chorou
Até que o peito secou
Como aquele rei do Ida
Sobre a aldeia perdida.

32
Seu moço, vamos andando
Que a tarde tá despencando
E se a noite nos pegar
Tenho medo de avistar

33
O que o povo comenta:
Um cavalo de madeira
Rolando como tormenta
Sobre as cinzas e a poeira

34
Deste rancho destroçado
Queimado até o chão,
E do poço envenenado
Nessa noite de aflição.

FIM

quinta-feira, 5 de junho de 2008

ROMANCE DA FAUNA DA CRATERA


Romance da Fauna da Cratera
para as crianças de Vargem Grande, na grande São Paulo)
Cordel de Guilherme de Faria


1
A vocês, minhas crianças
Que habitam uma cratera
Depositando esperanças
Nesta nossa Nova Era

2
Vou agora apresentar
Pro povo de Vargem Grande
A fauna deste lugar
Que está por onde se ande

3
E precisa ser notada
E também mais protegida
Pois sendo tesouro de vida
Tem é que ser preservada

4
Mas antes vou perguntar
Se ocês sabem o que é cratera
Que é pergunta elementar
Cujo saber não onera

5
E não precisa ciência
Muito profunda e sutil
Não se trata de essência
Que só passa no funil

6
Basta pensar num pedrão
Vindo de cima, do espaço
E que chegando no chão
Faz um grande estardalhaço

7
Fazendo um buraco imenso
Com a borda escarpada
A área central, como um lenço
Fica meio achatada

8
Depois de alguns anos
Começa a nascer o mato
Depois floresta de fato
E a chegada dos tucanos

9
Vem gavião carijó
E o joão-teneném
Aves que aqui tem
Tiê-preto e socó

10
Rolinha, garça-vaqueira
Corruíra, caracará
Andorinha de coleira
Suirirí e tangará

11
Tesoura, carrapateiro
Trinca-ferro-verdadeiro
Pichororé, bem-te-vi
Pardal e pitiguari

12
Pica-pau-anão-barrado
Pula-pula e matracão
Verdinho coroado
João-porca e tesourão

13
Sabiá-poca, peitica
E sabiá-de-coleira
Pia-cobra, mariquita
E sabiá-laranjeira

14
Cambacica, coleirinho
Anú-preto, enferrujado
Alma-de-gato, patinho
E bem-te-vi-rajado

15
Andorinha serrador
Teque-teque, tico-tico
Pula-pula assoviador
Quero-quero, periquito

16
Eu poderia cantar
Mais passarinhos nas rimas
Algumas que vão ficar
Outras boas pr’as latrinas

17
Mas passo, penalizado
Ao veado-catingueiro
Quase extinto, derradeiro
Como o ratão-do-banhado

18
E termino consternado
E triste como se vê
Para o quase exterminado
Esquilo caxinguelê.

19
Por tudo isso que era
E será a sua herança
Digo a você, criança,
Cuide da sua Cratera!


FIM

07/11/2004