segunda-feira, 27 de outubro de 2008
Romance do Narciso do Sertão (Cordel de Guilherme de Faria)
1
Já que o doutor perguntou
Sobre o pobre do Jacinto
Vou contar ao seu Doutor
O que penso e o que sinto.
2
Como o doutor se recorda
Olhando daqui o açude
Aquela casa, na borda,
Não tinha vicissitude.
3
Para um moço do sertão
Era belo em demasia:
Pro Jacinto não havia
Outra preocupação.
4
Era uma flor de talude
Pras moças que o avistavam
Na beira daquele açude
E elas o vigiavam
5
De longe, porque a beleza
Não produz somente amor:
Impõe um certo temor
Quando não produz tristeza.
6
Entretanto, é meu palpite:
Sem gestos amaneirados
(que isso nem se admite
aqui por estes lados),
7
Parecia se orgulhar
Em bastar-se só a si
Não querendo namorar
Nenhuma moça daqui.
8
As moças até suspiravam
Quando de longe avistavam
Perambulando ocioso
O pobre moço vaidoso.
9
A Dadá, que era uma delas
Destrancou suas tramelas
Seguindo-o meio escondida,
Temendo não ser percebida
10
Atrás de toco ou mourão,
Olhando e dando gritinhos
Pra ver se chamava a atenção
Fingindo uns desmaínhos.
11
Jacinto nem percebia
E continuava sonhando
Solitário em sua vigia,
A água do açude olhando.
12
Não demorei a supor
Que o Jacinto em seu “complecho”
Tava mais pra outra flor
Que olha pro seu “reflecho”.
13
Como aquilo agoniava
Podia ser percebido
Que ele não reparava:
Era muito distraído.
14
Um dia Dadá decidiu
Declarar-se, toda amável.
Coisa rara ou infantil
Eu diria, impensável:
15
“Já lhe conheço , Jacinto,
De longe e gosto de si.
Vou lhe dizer o que sinto:
Serei sua agora e aqui.
16
Sua voz deixa eu escutar
Mesmo que seja tristonha
Nem que for pra me xingar
Que perdi toda a vergonha.”
17
Com o ar triste e quedo
O rapaz só suspirou
Virou-se e se retirou
Sem nem dizer “azevedo”.
18
Ela quis seguir-lhe a pista
Mas ele desceu o talude
Num canto daquele açude
E ela o perdeu de vista.
19
Depois disso, a coitada
(dizem as Madalenas)
Vagando foi avistada
Cantando umas cantilenas.
20
Até que se aquietou
E ela nunca mais falou
Palavra, e só repetiu
Sempre a última que ouviu,
21
Parecendo o divertir
Das meninas do sertão
Que brincam de repetir
Pra irritar o irmão.
22
O Jacinto, examinado
Por esse mesmo doutor
Que está aqui ao meu lado,
Se se recorda o senhor,
23
Fez-lhe um diagnóstico
A meu ver meio agnóstico:
O povo diz “de pressão”
Achando o sangue, a questão.
24
Mas o Jacinto, coitado
Uma noite entrou no açude
Até onde saber pude,
Nunca mais foi encontrado.
25
O povo deste sertão
Diz que foi sucuri,
Cobra grande qual vagão,
Mais rara do que saci.
26
Mas pensando descobri
Que o moço era orgulhoso
Demais pra viver aqui
Entre esse povo feioso.
27
O ser humano (é minha crença)
Já é feio de nascença,
E beleza de gente é extremado:
É coisa de Deus ou Diabo!
FIM
25/03/2002
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