terça-feira, 16 de dezembro de 2008

Romance do sangue e da água (cordel de Guilherme de Faria)


1
Não era um sítio isolado
A nossa terrinha antiga
Mas sem cabeças de gado,
Sem horta, que nada irriga.

2
Só cabras mascando coisas
Que nem sei se são raízes
Confinando com os Soizas
Com seus dois ou três Luizes.

3
Havia pouco em disputa
Mas sangue vinha na boca
E o gosto era de luta
E não se dormia de touca.

4
Por “dá lá aquela palha”,
E palha não faltava
Já que tudo esturricava,
Soa um tiro, outro ali falha.

5
Eu já tava descorçoado
De viver daquele jeito
Trazia uma bala no peito
E duas aqui do lado.

6
Mas em compensação
Já perdera dois dos filhos
E eles dois dos Luízes,
Que eram cinco os infelizes.

7
Já não se podia andar
A esmo por esta senda
Pois a bala das crianças
Era vendida na venda

8
E não era bala de mel
Ou de celofane o papel,
Mas de chumbo e amarga
Com direito de recarga.

9
E foi aí que eu quis
Chamar o velho Luiz
Para um duelo de morte
Que nos decidisse a sorte.

10
Desde que o que sobrasse
Então por honra adotasse
O filhos do falecido:
Nem vencedor, nem vencido.

11
O mais incrível, hoje vejo,
É que o Luiz velho aceitou
E comigo duelou,
Que era só um percevejo

12
Na cama dele, mais rico,
Que não tinha nem um tico
De medo, mas sim ganância,
Enquanto eu, arrogância.

13
Mas eu sabia que ao menos
Sua palavra mantinha
Até pelo orgulho que tinha,
O resto era de somenos.

14
E assim, de madrugada
Com a arma engatilhada
Nós fomos para a restinga
Seca como a caatinga

15
Mas eis que na chapada
Foi trovão que ecoou
E chamou a sua amada
Que sobre nós desabou

16
E encheu o leito seco
Que até mesmo desbordou
Cobrindo de verde e esterco
A horta que então vingou.

17
E o gado por milagre
Que pastava e paria
Devolvia pra Maria
O leite que lhe faltou.

18
Na chuva nos abraçamos
O velho Luis e eu
Juntando o dele e o meu
E só balas não plantamos

18
Jogando elas no rio
Como peso para anzol
Pois um novo arrebol
Encerrava o desvario.

19
E juntamos os dois Luizes
Com os meus dois Joões,
As Marias e seus botões
E estes velhos narizes

20
Que já não andavam erguidos
Farejando nosso sangue
Que agora está contido
Na alma como num mangue.

21
Formamo uma só família,
O velho Luiz finou,
Também a minha Maria,
Fiquei com a que restou.

22
Foi assim que a água veio
E que o sangue refluiu
Neste sertão que era feio
Quando reinava o fuzil

Neste mamilo de seio
Que o povo chama Brasil...

FIM

14/12/2008

2 comentários:

Má (lisa) disse...

Que lindo, Guilherme, amei seu poema.
Conheci você através de um comentário que deixou no Overmundo...e só peli seu comentário já se percebe a sua sensibilidade poética...
Sou também amiga de Cíntia,e foi lá que me despertou a sua presença.....Muitíssimo prazer....

Marilis

Guilherme de Faria disse...

Obrigado Marilis
Que belo nome o seu!
Entao você é Overmana!
Esteja à vontade no blog deste humilde cordelista.
Sugiro que vá visitar também a minha musa Alma Welt:
www.almawelt.blogspot.com
O prazer foi meu
um beijo
Guilherme