quarta-feira, 8 de agosto de 2007

Romance da Travessia (cordel de Guilherme de Faria)


Cordel de autoria de Guilherme de Faria,
baseado n'A Divina Comédia, de Dante Alighieri.

1
Pr’este auditório seleto
Minha estória vou contar
Fazendo o relato completo
Pra quem quiser me escutar.

2
Vou tratar da travessia
Que, em Deus, logrei completar
Quando há anos já não via
Saída pra algum lugar.

3
Tendo perdido a estrada
Me vi perdido no Nada
De uma caatinga anoitada
Entanto que ensolarada.

4
Estando sem eira nem beira
Mas com meu gibão trajado
Chapéu de couro e perneira
Todo assim ataviado

5
Criatura preparada
Por fora pra travessia
O espinheiro da jornada
Por dentro me parecia.

6
Mas volto mais pro início
Quando um Vate aparecia
Uma figura de hospício
Romeiro, poeta e guia.

7
Seu nome era Virgiliano
Encontrei-o num portal
Seu ponto há mais de um ano
Dormindo sobre um jornal.

8
Assim que me viu chegar
Esse portal apontou
Convidou-me para entrar
E o portão empurrou.

9
Em cima, pregada na tora
Se via uma tabuleta:
“Não adianta esperá aí fora,
Ou adentre ou não se meta “

10
Aquilo era uma ruína
Que se abria para o Nada
Ficava no fim da estrada
Seguida de uma ravina.

11
Eu que andava perseguido
Por um casal inimigo:
Leopardina e Lobão,
Só restava a aceitação.

12
Fiz o jogo do louquinho
E segui o seu desmando
Ainda antes do caminho
Fui cercado por um bando

13
De mendigos, na porteira
Que dali nunca saía
E de mosca varejeira
Infestado, se esvaía.

14
Perguntei ao novo guia
A razão dessa agonia
E quem era aquela turba
Que a minha vista perturba.

15
Virgiliano deu de ombros
No meio daqueles escombros
E declarou sem alarde:
“Esse é um povo covarde”.

16
“ Olha e passa”, ele me disse
Com ele então concordei
“Passa como se não visse”
E o portal atravessei.

17
E me vi numa caatinga
Mais dura que aquela estrada
E pelo sol abrasada
Como a goela pela pinga.

18
Só se via urubutinga
Voando na contramão
Pois no meio da caatinga
Só ossos brotavam do chão.

19
Naveguei nas catingueiras
Pois eu tinha o meu gibão
E nas pernas as perneiras
Assim como as costas da mão

20
Virgiliano, como a palma
De sua mão conhecia:
Sem avistar viva alma
Ele nunca se perdia.

21
Mas pra atravessar o atoleiro
De um açude ressecado
Contamos com um barqueiro
Que tava meio atolado.

22
Usando uma prancha no barro
Arrastada c’uma corda
Levou-nos até a outra borda
Cobrando até meio caro.

23
Remontando a barranca
E reentrando no espinheiro
Deixamos aquele barqueiro
Sem barco e sem Carranca.

24
Disse: “Dantino, aprecia,
Mais adiante a ventania.
Nessa altura da jornada
Vê se aceita a empreitada”.

25
Dobrei-me então na sela
Agarrando no pescoço
Enquanto voava destroço,
Touceiras e areia amarela.

26
O pobre do meu Pintado
Mais magro que um rocinante
Também estava assustado
Mas teimava em ir adiante.

27
No meio da ventania
Eu quase que não via
Um casal que se abraçando
Já estava meio voando.

28
Esse par de retirantes
Se mantinha como dantes
Apaixonado, se via,
No meio da ventania.

29
Assim que me aproximei,
O seu nome perguntei.
“ Sou Francisca, do Reimão
-Se apresentou - “ e o Paulão”.

30
Indaguei do seu destino
E porquê do desatino
De andar naquele vento
Que aterrava o pensamento.

31
A Chica então parou
Parecendo que pousou
E me disse entre soluços
Mas direto e sem rebuços:

32
“ Seu moço, vou-lhe contar
A desgraça que me guia,
Que decerto não fugia
Se eu pudesse optar.”

33
“Paulão é o meu cunhado,
Meu marido, um deformado,
Depravado e ciumento,
Mais burro do que jumento.”

34
Lanxoto é o seu nome
Que a Peixoto nem chega
Tá é mais para Veiga
De covarde o sobrenome.

35
Nos pegou lendo na cama
Aventuras de cordel
Nos chamou “par de bordel”
E fez juz à sua fama.”

36
Sua arma era um canhão
Pela sua proporção
-Arma, virum que cano?
Me lembrei do Virgiliano.

37
“Agora estamos perdidos
Sem teto e também sem pouso
Não encontramos repouso
Tamos meio arrependidos.”

38
Eu que ouvia seu relato
Tava cansado, de fato,
E ficando emocionado
Caí no chão, desmaiado.

39
Recobrado, num tropel,
De galope, um povaréu
De jagunços nos cercou
De modo que me assustou.

40
Apontando seus fuzis
Escapamos por um triz
Quando viram Virgiliano
Que trataram como mano.

41
Virgiliano trocou verso
Com um deles como irmão
Um tal chamado Quirão
E outro chamado Nerso.

42
Depois o chão, na andança
Da travessia de novo
Deixando aquele povo
Sem saudade e sem lembrança.

43
Virgiliano deu ciência
Que aquele plaino achatado
Tava assim denominado:
“Raso da Violência”.

44
Ali não havia rosas
Mas um espinheiro danado
Que estava povoado
De umas megeras furiosas

45
Que puxavam pelos braços
No meio dos espinhaços
Um pobre meio sem vida
Candidato a suicida.

46
Evitamos a polêmica
Para que o povo se entenda
Percebendo que a contenda
Parecia meio endêmica.

47
Mais adiante vimos logo
Uma malta em retirada
Que parecia assustada
C’uns marimbondos de fogo.

48
Então perguntei ao guia
Sobre a turba malfadada
A que violência devia
Sua triste debandada.

49
Virgiliano, com dureza
Contou que eles maldiziam
A Aldeia em que viviam,
Deus, a Arte e a Natureza.

50
E que um tal de Capanão
Continuava orgulhoso
Levando o povo raivoso
Blasfemando no Sertão.

51
Preferi desconversar
Pra frente continuando
Que os marimbondos no ar
Já me estavam incomodando.

52
Seguindo o que o Guia rege
Encontramos logo o rio
Fregetão, que nada frio
Revolto, tão, que era um frege.

53
Com Virgiliano comento
Que esse rio de lágrimas
Do humano sofrimento
Fervia como fermento.

54
Seguimos observando
Um velho que o navegava
Sozinho no barco remando
Como o Tempo, que levava.

55
Prosseguindo, não esperava
Encontrar uma caterva
Que sem fumar qualquer erva
Mesmo assim desmunhecava.

56
Brunão Ladino, Pricianos
Chico do Cursio, André
De moças com jeito até,
Davam mês e davam os anos.

57
O Fregetão desabando
Em cascata revelava
O ardente Ardobrando
Que na ducha se banhava.

58
Deitado na areia quente
Pra quem tinha tal prestígio
Tava pelado, indecente
Como o rústico Aprígio.

59
Hermes Bolseiro vinha
Falando em Rusticúgio
Que não dava o dito cujo
Só pra não perder a linha.

60
Até vi, se desnudando,
Bonito, na cachoeira
O Gerião, mergulhando,
Como cobra, sem esteira.

61
Eu já conheço a fraude
E a beleza do moleque
Que vive passando cheque
Sem ligar que a gente malde.

62
Mas pior, os usurários
Que não dão tostão pras Artes
Banqueiros que são vigários
Na areia esquentando as partes

63
Gerião, que me levou
Nas costas, o rio abaixo
Lá de cima mergulhou
A garupa onde me encaixo.

64
Saímos do “Violência”
Esse Raso, sem saudade,
Chegando no “Fraudulência”
Do Gerião a herdade.

65
Maleborges: sedutores
De açoite sofriam dores
Rufiões, aduladores,
Poupados só os atores.

66
Jasão, da Medéia, também
Não do Teatro, o próprio:
Pra não largar mais ninguém
Seduzindo como ópio.

67
Ali vi Taís, na Zona
Dos seus membros amazona.
Na verdade, devotada
Só ao prazer da moçada.

68
Depois, pegamos “Simão”
Raso onde vi um ladrão
De cálices e ostensórios,
Com terços, de suspensórios.

69
Encontramos Bonifácio
Padre que até vender
A Paróquia achava fácil
Difícil era devolver.

70
Na Caatinga divisei
Que até desentendi
Um vigarista nissei
Cabeça virada, eu vi.

71
Vi ali Miguel Chicote
Um Mágico do Sertão
Que metido a ler a sorte
Acabou um charlatão.

72
Depois vi uns funcionários
Perdidos como a gente.
Errando a trilha acabaram
Num betume fervente.

73
Malacoda então na trilha
C’uns matutos nos ajuda
Uns diabos, gente muda,
Escolta por mais de milha ,

74
O que era até porreta
Se não fosse um porcalhão,
Que atravessando o Sertão
“Fazia do cu trombeta .”

75
Conheci um tal João Pulo
Do Tebaldo um agregado
Que fazia o mal mandado
Mas deixando rastro nulo.

76
Do “Hipocrisía” oriundo
Vinha todo encapuzado
Com um manto bem pesado
Dourado por sobre chumbo.

77
Eu e o Vate, entrementes
Encontramos um ladrão
Que pisando umas serpentes
Se sentia em combustão.

78
Vânio Fuça era o seu nome
Que roubara uma Igreja
Um valente de renome
Perder a honra, ora veja...

79
E ainda vem me dizer,
Mordido pela malícia
Da maldade, pode ser:
Que me buscava a polícia.

80
Encontrei um cavaleiro,
“Caco”, ladrão e embusteiro
Coberto de cascavéis
Enrolado nos anéis.

81
Achei a visão confusa
Pra minha mente obtusa
Calarei o acontecido
Cobra e gente é parecido.

82
Encontramos dois vaqueiros
Ulisse e Diomé chamados,
De gibão, ataviados
Mas no espinho o tempo inteiro.

83
Essa dupla embusteira,
Suspendeu as nossas falas
Num cavalo de madeira
Enrolados numas palas.


84
Ulisse narrou aventura
Do tempo de marinheiro
Muito longe do terreiro
Da Caatinga, terra dura.

85
Naufragou c’o a marujada
Afundando capitão:
Que mentira mal contada!
Como é que tá no Sertão?

86
Monta-Feltro apareceu:
Jagunço e frade, danou
Pois mau conselho ele deu
E o Bonifácio pecou.

87
Chegamos então na chapada
Onde vi gente ferida
Como por golpes de espada
Por confusão na vida.

88
Mau-o-Mé na Caatinga
Me contou a sua cisma
Se dou palpite ele xinga
Não agüento seu carisma...

89
Ele mandou um aviso
A frei Doce, impenitente
Pra que tomasse siso
Se não ia ficar quente.

90
Depois vi Beltrão da Bórdia
Repentista de primeira
Que instigou a discórdia
A dois Henriques na feira.

91
Pai e filho foram à guerra
Brigando por uma terra
Mau papel pr’um trovador,
Perdendo do povo o amor.

92
E agora a cabeça solta
Despegada do pescoço
Tão avoado que, em volta,
Vê o Talião sem esforço.

93
Depois vimos falsários
Passando as suas notas
No deserto esses janotas
Destoavam e eram vários.

94
Um até chumbo dourava
Fazendo de milagreiro
Mas seus males não curava:
De feridas, por inteiro.

95
E um Grifolino com a peça
De um pavão misterioso
Pra voar belo e formoso
Um Alvinho, créu à beça.

96
Vou agora resumindo
Deixando de relatar
Gente que vinha vindo
Querendo causos contar.

97
Vou então narrar um fato
Que tocou-me mais fundo
Pois ouvindo esse relato
Hesitei voltar pro Mundo.

98
Bem no meio da aridez
Encontrei o Ugolino
Um rico velho que fez
Da desgraça um violino.

99
Conspirando na surdina
Foi preso a céu aberto
E agora desatina
De fome nesse deserto

100
Morrendo à mingua estava
Com dois filhos e dois netos
Quadrilha que o acompanhava
Encolhidos como fetos.

101
Devorando a própria mão
Definhavam no Sertão
Perseguidos, sem um prato,
Pelo arcebispo do Crato.

102
Rogério, esse prelado
Um tirano depravado
Manteve, forjada ou não,
Denuncia de traição

103
Pra se livrar do Ugolino
Antigo vice-prefeito
Um bode quase perfeito
Pr’as maldades de um felino

104
Esse tigre do Crato
Fez então pagar o pato
Seu antigo funcionário
Triste correligionário.

105
E o Ugolino vê morrer
De fome filhos e netos
Perdidos nestes desertos
Onde o povo há que viver.

106
Me afastei, condoído
Já que estou proibido
Até de dar de comer,
Só podendo olhar e ver.

107
Saindo do Antenora
No Tolomea, agora
Falando com Frei Alberico
Que eu pensava vivo e rico.

108
Me contou o espantoso
Que seu corpo ,em sua terra
Mamulengo de uma fera
E a alma aqui, sem pouso.

109
O Miguel e o Brancadouro
Aqui, nadando em betume,
O Branca , no Logradouro
Ainda é dono de um curtume.

110
E no Raso da Judeca
Do Judas o fiofó
Andando por Seca e Meca
Agora só gelo em pó.

111
Dois jagunços traidores
Bruto e Cassio, grão-senhores
Também ali atolados
Pelo Cujo mastigados.

112
Gritei nessa confusão
Ao som da mastigação
“Virgiliano, socorro!”
“Quero sair, senão morro!”

113
E o Poeta, prudente:
“Dantino, do terminal
Não se sai pelo portal.
Você tem de ir pra frente!”

114
Vi o Cujo impressionante
Asa abrindo a todo instante
Para gelar com seu Vento
O calor do pensamento.

115
Mas olhando respondi:
“Virgiliano, então vamos!”
E ele, virando, sorri:
“Vê, Poeta: já passamos!”

116
Na subida do Funil,
Invertida a fera vimos;
Já por cima o toldo anil
Co’as estrelas como mimos

117
Sobre a terra abençoada.
Só rever a minha amada
A Divina, desprezada...
Abraçá-la nesta estrada!

118
E cedinho me encontrei
No seu rancho e separei
Do Vate c’um abraço forte
Qual se ele fosse pra Morte.

119
Depois, café com a Divina
Com média, pão e manteiga.
Ah! como estava meiga
Me passando a margarina!...

FIM

22/05/2002

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