domingo, 5 de agosto de 2007

Romance do Retorno (Cordel de Guilherme de Faria)


1
Vigia doutor Raimundo
Muito ao longe aquela serra
Que azula fora da terra
Deste seu vale fecundo.

2
Ali é que tá o reino
Duro do meu sertão
Onde só caça sem treino
O carcará gavião.

3
Ali a pedra até chia
Sob esse sol inclemente
Para o ouvido potente
Dos sertanejos que havia.

4
Mas basta seguir o voar
Do carcará experiente
Pra vida ou morte encontrar
Nunca menos e... inté gente.

5
O peão que sabe olhar
Lê o chão e as entrelinhas
Como em livro de contar
Estórias de carochinhas.

6
Nem que seja analfabeto
Pros livros que tem letrinha
Que o saber do home esperto
Desde o berço ele já tinha.

7
Sofrimento que se tema
Onde não há seu doutor
Que nem filme de cinema
Proibido pra menor

8
Que é melhor não ver sozinho
Até o fim, sem rompantes,
Que a porta não se abre antes
Pra não perder o escurinho.

9
Vou volta para o sem cor
Daquele meu chão rachado
Que este tequinicolôr
Tá pra filme adocicado.

10
Minha alma toda clama
Pela secura do chão
Da terra que o povo chama
Pelo nome de Sertão.

11
De dia a catingueira
Mantém a vista ocupada.
De noite é aquela peneira
De estrelas de cumbucada!

12
Mas mais bonito direi
Que ali a noite se estende
Como odossel de um rei
Adormecido na rede.

13
Por isso, doutor, me vende
O seu cavalo e a sela
E tudo mais que se entende:
Manta, arreio e fivela,

14
Pelo dinheiro guardado
Trabalhando aqui no exílio
Que quero chegá montado
Como um trenzinho no trilho.

15
Entanto co’as mão abanando
Eu vou erguer na poeira
Do chão meu rancho brotando
Como raiz macaxeira

16
Que é raiz muito brava
Que tá ali pra qualquer besta...
Fome lá eu não passava
Vim passá aqui na festa,

17
Até aprender a catar
O fruto amaldiçoado
Que brota sem se plantar
Neste chão acimentado.

18
Mas amanhã bem cedo
Vou me embora pro sertão
Pois vê o senhor que não cedo
E mantenho opinião.

19
E já que aceitou a oferta
Vou e não volto mais
Que o destino é que trás
Na sela sua controferta.

20
Volto ali pro começo
E fico lidando então
No tear aonde teço
Minha teia de ilusão

21
Ouvindo a voz que me chama
Das estrelas sagradas
E o grito da sariama
Ecoando nas chapadas

22
Onde só um olhar assim
De carcará feiticeiro
Vigia o amplo terreiro
Vigia o reino sem fim!

FIM

2001

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