quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Romance do Furdunço (cordel de Guilherme de Faria)




Romance do Furdunço
(cordel de Guilherme de Faria)


1
Amores, sonhos, virtude
São coisas que eu nunca pude
Realizar com clareza,
Me desculpem a afoiteza

2
De logo ir contando assim
Os podres da minha vida
Que não foi nem escolhida
Nem tão falhada, enfim.

3
Mas eis um sonho que eu pude
Realizar em plenitude:
Fazer um cordel fecundo,
Contando as coisas do mundo.

4
“O poeta­­”,disse Keats,
“não deve ser moralista”.
E nisto estamos quites:
Bom poeta é anarquista,

5
Quer dizer, não temos rei
Nem governo imperialista.
Democracia terei
No “Dia do cordelista”.

6
E agora dito isso
Vou contar um causo estranho.
Deixa eu enxugar o ranho
Que já começo o serviço.

7
Pois bem, havia um jagunço
Na minha terra de outrora
Que gostava de furdunço
Desde que fora de hora.

8
Entrando um dia na igreja
Convidou a freguezia
Pr’uma festa que faria
Sem admitir peleja.

9
Refiro peleja mesmo
Não aquelas “de repente”
Regadas a pinga e torresmo
Mas sem matança de gente.

10
O povo ressabiado
Quis ao menos levar faca.
Disse o jagunço engraçado:
“Só pra quem levar sua maca”.

11
Nos marcados hora e dia
Começou chegando o povo,
A sanfona já rangia,
Na zabumba Mestre Corvo.

12
Um músico com essa alcunha
Com fama de aziago
Pois pegou o cargo vago
Quando matou Mestre Cunha.

13
O triângulo, de bermudas,
Tocava feito um demônio
Parecia Mestre Judas
Tocando pra Santo Antônio.

14
O sanfoneiro (esquecia)
Era filho de Maria
Mas de Maria Joana
Que era uma velha sacana.

15
Havia também uma flauta
Do osso de uma canela
Mas não de pau-de-canela
Mas da canela do Malta,

16
Um antigo delegado
Que morreu estraçalhado
Pela jagunçada amiga
De um furdunço sem intriga.

17
Então lá pras tantas horas
O forró correndo solto,
Pinga e licor de amoras,
Só tendo morrido o Couto

18
E talvez o velho Pacheco,
Que esse já tava seco
E já foi embora tarde
( pimenta no outro não arde).

19
E mais dois ou três, se tanto,
Pois que tando desarmado
O povo jogava pr’um canto
E persistia animado.

20
Tô contando esse caso
Em louvor da nossa gente
Que sempre fez muito caso
De ser de paz e decente.

21
No fim da festa, surpresa!
Foi colocado na mesa
Um bolo imenso, branquinho
Doce como chantilinho,

22
De onde saiu um jagunço
De rifle armado e pistola
E começou o furdunço
Verdadeiro, sem esmola.

23
Foi bala pra todo lado
Tinha bala pra criança
Tinha bala com melado
De festim e de festança.

24
Só ficou vivo ninguém
E se afirmo o que disse
É que meu nome é “Ninguém”
Como o companheiro Ulisse.

25
Para contar a estória
Precisava um morto vivo
E eu sem contar não vivo,
Essa é a minha glória.

26
Agora que já contei
Passem logo a “mãe da besta”,
Saberão se não inventei
Se eu lembrar depois da festa.

FIM

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Romance dos tipos do sertão (Cordel de Guilherme de Faria)


Romance dos tipos do sertão - Memórias de Adão Ferreira
(Cordel de Guilherme de Faria)

1
Vosmecê, meu povo amigo
Já conhece a minha fama
De cantador meio antigo
Que em vez de cantar, declama.

2
Venho por essas estradas
Contando causo demais
Desse povo, nas noitadas,
E ainda tem muito mais.

3
Quanta gente conheci!
Quanta fé testemunhei!
Patranha também eu vi,
C’umas até concordei.

4
Mas dentre essa galeria
De tipos do meu sertão
Vou fazer presentação
Como a memória desfia.

5
Tem de tudo no meu álbum:
Vaqueiro, doutor, coronel,
Mulher, criança, e algum
Bandido cheio de fel.

6
Mas só para eu me lembrar
Vou descrever logo um tipo
Que me faz acreditar
Que pobre eu sou mas é rico.

7
Um avarento ridíco
Que morreu de inanição
Num trecho fértil do Chico
Oásis deste Sertão.

8
Esse rico indigente
Queria só exportar
O fruto de tanto suar
P’ras terras de outra gente

9
Para acumular dinheiro
Pro dia de precisar,
Juntando pra que ao herdeiro
Não fosse nunca faltar.

10
Mas ao morrer, cuidadoso,
Deixou um bilhete famoso:
“Me enterrem direto no chão,
Pr’eu economizar caixão”

11
“Que é muito desperdício,
Pois rede ou madeira e verniz
É coisa que eu nunca quis
Pr’os ossos do meu ofício.”

12
Tem também o causo ilustre
Dum coronel afamado
Que subiu no próprio lustre
Onde ficou pendurado

13
Só pra ver se flagrava
A patroa c’um peão
Que o leito compartilhava,
Seco como esse sertão.

14
O tiro veio de cima
E varou o coração
Dos dois, na última rima
Que restou nessa canção.

15
Até pro doutor legista
Foi difícil decifrar
De qual ponto de vista
Pôde assim se disparar.

16
Teve ainda um causo triste
D’um vaqueiro apaixonado
Que vivia de arma em riste
Mas sempre, sempre frustrado.

17
Pois o alvo da paixão
Tinha marido e filha,
Que no mar deste sertão
Ninguém vive numa ilha.

18
E o peão foi limpar
O campo de atuação
Numa mesa de bar
Onde armou discussão.

19
Depois de tiro acertar
Correu pro rancho rival
Não pra se confessar,
No que se deu muito mal

20
Pois a moça farejou
O sangue de seu marido
E da soleira aplicou
No peão um “pé do ouvido”.

21
“Fora, homem! Ocê não presta,
Que me tem enviuvado,
Cê matou homem honrado,
Honra é só o que me resta!”

22
E tem a estória escabrosa
De um vaqueiro feioso
Que resgatava a famosa
Tese do doutor Lombroso,

23
Que afirma que quem vê cara
Vê, por certo, o coração,
Desde que olhe para
A cara com muita atenção.

24
Esse ser mal acabado
Se apaixonou pela filha
De um vaqueiro calejado
De quem era a maravilha

25
Pois a moça era beldade
Pelo menos pro sertão
E com muita pouca idade
Já causava emoção.

26
E o vaqueiro Notredame
Que era corcunda e mancava
Como quem teve derrame
E mesmo assim trabalhava

27
Tinha um feio coração
Que no entanto comandava
A carcaça em sua paixão
E o vaqueiro obstinava.

28
Não sabendo se expressar
Em bela declaração
Decidiu foi raptar
A moça em camisolão

29
E manteve a prisioneira
Por três dias numa cova
O que pra ele era prova
De sua “paixão verdadeira”

30
Quando afinal encontraram
A moça já tava louca
E o vaqueiro enforcaram,
Que foi até coisa pouca:

31
Que a coluna do calhorda
Ficou retinha até
Estirada numa corda
Amarrada no seu pé.

32
Mas me perdoem esse causo
Que me parece impiedoso
Também creio que o descauso
Foi a causa e não Lombroso,

33
Pois se o pobre sem amor
Com a morte esticou um pouquinho,
Se criado com carinho
Saberia amor propor.

34
Ouçam agora a de um menino
Que ganhou uma viola
Quando ainda pequenino,
Bem maior que a sua bitola

35
Mas foi crescendo então
Todo em volta do instrumento
Que parece um segmento
Da costela desse Adão

36
Adão Ferreira, meu nome
Que aqui me apresento
Até com certo renome
Por causa do meu talento

37
Que é contar pr’ocês meu povo
Os causos de ocês mesmo,
Pra ocês se vê de novo
C’um pouquinho de torresmo

38
Que exagero é o colorau
Do contador afamado,
Pimenta de cheiro e sal
Para o causo ser lembrado.

39
E agora vou saindo
Deixando um gosto de pouco
Que é pr’ocês fica sorrindo
Do poeta meio louco

40
Que acredita na Poesia
Desse ser de maravía
Que é o homem comum,
Que são vocês: um a um!

FIM

Romance da Teia (Cordel de Guilherme de Faria)



1
Na vila do Tenente
Lá onde o Judas morou,
Vivia mulher valente
Que a Morte enviuvou.

2
Muito cedo ele findou,
Para quem tanto o amou,
E ela não carecia
Dos pretendentes que havia.

3
Penelópia a chamarei,
Já que sou testemunha
E o motivo dessa alcunha
Mais adiante lhes direi.

4
No entanto o expediente
Da teia não lhe ocorreu:
Resistia bravamente
Des’que o marido morreu,

5
Na base do clavinote
Carabina de bom porte
Que o marido já tinha
E deixou-lhe, com a casinha.

6
Penê, como eu a chamava
Uma caixa já esgotara
De munição e findava
Com a segunda que restara,

7
Não sabendo o que faria
Quando acabasse o chumbo.
Sua honra lhe doía
Como couro de bumbo.

8
Para ela era um espanto
Qualquer novo casamento,
Já que tinha amado tanto
E sido feliz tanto tempo.

9
O Destino em linha torta
Bateu-lhe afinal na porta
Com um moço forasteiro
Que chegou no seu terreiro.

10
Vinha meio extraviado,
Num pobre cavalo montado
Por uma cuia d’água
Pra si e pro seu Pintado.

11
Vinha dormindo na sela
Há dez dias como um Huno
Mas sem carne embaixo dela
E nem um pedaço de fumo.

12
Era um jovem apessoado
Mas estava piolhento,
De banho necessitado,
Que tava meio sebento.

13
Não parava de coçar
A cabeça, e de olhar
Com aqueles “óio” morteiro,
De fala mole, mineiro.

14
Bronco, belo, indefinido
Como um deus decaído,
Desavisado chegou,
Tanto que a desarmou.

15
Encostando o clavinote
Ela deixou-o entrar,
Banhou-o com água de pote
Pra depois o alimentar.

16
Levou-o até o seu leito
De viúva inconsolada,
Esquecendo o voto feito
E até a rede armada.

17
Mas não deitou-se ao seu lado:
Observou-o deitado,
Longamente, adormecido,
Como o “deus desconhecido”.

18
Fechou a porta, então
E depois pelo portão
Saiu pegando uma trilha
E andou um quarto de milha

19
Até uma cruz fincada
Quase na beira da estrada,
Que era o leito final
Do marido original.

20
E quase gritando falou:
“Sinésio me ouça agora,
E depois pode ir embora:
Seu mensageiro chegou!

21
Um homem puro e decente
Como criança inocente
Dorme sem medo e profundo
Como se bom fosse o mundo.

22
Deixe-me agora voltar
E armar novamente o tear
Posso contar nossa história
Sem carabina empunhar.

23
Passarei teu clavinote,
Qu’esse homem ostentará
Defendendo o nosso dote...
Sinésio, vai descançar! ”


FIM

Romance da bela oleira





(Cordel de Guilherme de Faria)


1
Foi aqui, meu camarada,
Nesta olaria arruinada
Que conheci a Maria,
Do próprio barro encantada.

2
Moldada da mão de Deus,
O nosso Supremo Oleiro,
Maria “dos olhos-meus”
Como disse um violeiro

3
Era a única beldade
Em toda esta região,
Sua fama, de verdade,
Espalhou-se no sertão

4
Pois a nossa bela oleira
Da cor mesma de uma telha
Tinha uma bela maneira
De erguer a sobrancelha


5
Sem que ríctus parecesse
Daquela Lilith, não Eva:
Por mais que a bela excedesse
Passava longe da Treva.


6
Não tinha pois procedência
A calúnia que correu,
Quando o moço apareceu
Enforcado na Querência.


7
O povo só tinha visto
A moça ser perseguida
Pela presença atrevida
Do filho de Pedro Xisto

8
Que a despediu, o patrão,
Pra poder então matá-la
Sem chamar muita atenção,
E jogá-la numa vala.


9
Mas o povo a encontrou
Atirada, seminua
Em cima da argila crua
De onde se originou,


10
E a carregou na tábua
Mesma, em que põem a telha,
Agora bandeja de mágoa
Ardente como uma grelha.


11
E a expuseram frente a escada
Do casarão da “Querênça”
Durante uma madrugada
Cantando uma “Incelença”

12
Já era santa a beldade
Só faltava ascender
E pra isso o povo acender
A grande vela da herdade.

13
Que foi logo incendiada
Antes de raiar o dia
Enquanto aquela “famía”,
Correndo se arretirava.

14
Agora nem tico-nem taco,
Nem casa nem olaria,
Nem telhas, nem alegria,
Nem herdade, tudo opaco.

15
Mas a ruína da olaria
Com renitente beleza
Recorda a natureza
Cobrando a bela Maria.

FIM

28/11/2004

terça-feira, 9 de outubro de 2007

Um Outro Pavão Misterioso (cordel de Guilherme de Faria)



Um outro Pavão Misterioso
(cordel de Guilherme de Faria)
Ouç’ agora minha gente
uma estória de chorar.
Não verá mais comovente
o povo deste lugar.
Foi no começo do reino
desta terra do sertão.
Uma moça tão bonita
que igual se viu mais não.
Não era princesa de sorte
mas era de condição.
Por ela comanda a Morte
sete guerras no sertão.
Morreu gado, morreu gente
fazenda mudou de mão.
Mudou o rumo do mundo
só o seu não mudou não.
Essa moça tão formosa
vivia pro coração.
Já estava tão famosa
que produzia canção
Seu pai era um rei da terra
De couraça de gibão
homem afeito à guerra
mas no fundo um home bão
.
Pra sua filha doçura
palácio de maravilha
montanha de rapadura
açude de groselhão.
Não adiantou a ternura
Não muda o querer da gente
o fado ruim do vivente
malgrado sua sinecura
Estava escrito que Creusa
esse o nome da princesa,
conquanto fosse uma deusa
fadada a muita tristeza
por conta de um moço pobre
Esse engenhoso José
Embora engenho lhe sobre
competindo estava a pé
c’o filho do coronel
que vivia arrodeando
a princesa cobiçando
feito uma mosca no mel
Então fez um avejão
todo de ferro e de aço
com o tipo de um pavão
movido à força e cansaço.
E com esse estratagema
por cima deste sertão
com aqueles olhos de gema
linda cauda do pavão
O povo vendo voar
aquele estranho avejão
acreditava chegar
a redenção do sertão.
Recuperada seria a Fé
sem aquela punição
do dilúvio de Noé
em arca de embarcação
Sem a rola e o corvo
sem casal de hienas risonhas
que são do leão estorvo
naquelas disputas medonhas
O verde que ia voltar
traria o prazer da vida
pro povo daquele lugar.
com muita água e comida.
Mas, ai, que a sorte fatal
não deixa um gosto vingar.
Já se armara o seu rival
com canhão de militar,
ao saber que o moço, a bela
já lhe tinha raptado
por expresso gosto dela
que se tinha apaixonado.
Voavam pois abraçado
por cima desta caatinga
quando fogo cerrado
partiu da seca restinga
formando nuvem vermelha
em volta do avejão
que já voava de esguelha
Com nostalgia de chão
Tentou lupim e parafuso
os recursos de avião
mas nessa teia o fuso
o fado é que tem na mão.
Caiu por terra o casal.
Caiu por terra o pavão.
Caiu pra sempre o ideal
de haver chuva no sertão.
FIM















quinta-feira, 4 de outubro de 2007


A viagem do Pavão Misterioso- óleo s/ tela, de 80x100cm de Guilherme de Faria, coleção particular, São Paulo.

sexta-feira, 31 de agosto de 2007

Trovas Pícaras II e III (de Guilherme de Faria)

17/05/2006

À poetisa gaúcha Alma Welt

Trovas Pícaras II

1
No século passado
Me causava certa estafa
Ver um jeito ultrapassado
De dançar c’uma garrafa.

2
Era uma dança arriscada,
Pois de um modo meio afoito,
A guria, nesse coito
Podia ficar entalada.

3
Mas isso já tá antigo,
Foi antes da moda do umbigo
Que veio, por sua vez,
Antes da total nudez

4
Que veremos muito em breve
Pois que covinhas e pêlos
Já produzem seus desvelos
Pelas calçadas sem neve.

5
Na nossa terra estrangeira
Quase tudo se desfez,
Pois metade fala o inglês
E a outra metade, besteira.

6
Vou voltar pra Passo Fundo
Onde deixei uma “china”,
Pois a china deste mundo
Faz pastel, tem perna fina.

7
Outrora eu tive um amor
Que me ensinou a amar;
Mulher que só tem pudor
Nada consegue ensinar.

8
Por isso gosto daquelas
Que chegam tirando tudo
E uivam como cadelas,
Nada de cinema mudo.

9
Mulher assim é perfeita
E merece meus louvores;
Não regateia favores,
Não me faz essa desfeita.

10
Agora, minha audiência,
Pelos risos, gargalhadas,
Percebendo a anuência
Vou abordar as galhadas:

11
Um par frondoso de guampa,
Em geral é uma tampa
Pr’um conteúdo imundo,
Não há injustiça no mundo...

12
Por isso tome cuidado
Pois denota tua galhada
Um fracasso redobrado:
Não tens nem mulher, nem nada.

13
Esse negócio de trova
É começar e coçar
Por isso não paro, eis a prova:
Pela treze vou passar.

14
Se poder é documento
Leonardo nada seria.
Tô falando do Da Vinci,
Não do “Veni, vidi, vinci...”

15
Com dinheiro a mesma coisa:
Não chega a ter importância,
Haja visto o triste Soiza
Que não ganhou relevância

16
Nem com o seu mausoléu
Que não o levou ao céu,
Mas deixou-o sob a lousa
C’um erro: “Aqui jaz o Souza”

17
Senhorita (eu concluo)
De dançar eu tenho medo,
Porque quando danço eu suo
E quando suo eu fedo.


Trovas Picaras III


1
Amigo, peide a vontade,
Já que ocê tanto gosta:
Quem semeia tempestade
Certamente colhe bosta.

2
Se perguntam eu replico,
Pode ser um fato oco:
O Tinoco sem Tonico,
É pinico ou chapéu coco?

3
Não é que eu faça pouco
Nem tampouco dou descaso
O veínho meio rouco
Ainda é um arraso.

4
Quem dinheiro só investe,
Merece aposta ou a peste?
Quem não vive e só poupa,
Enterrem pelado, sem roupa.

5
No meu fraco entendimento
O maior gênio do mundo
É o inventor do catavento
Que se chamou Giramundo.

6
Mas a maior invenção
Não foi o motor a explosão
Mas a cama e o travesseiro
Para o sono do guerreiro.

7
Amigo, seja bem vindo
Mas deixe o rifle na porta
A faca entregue ao Benvindo,
E tire o cavalo da horta.

8
Meu amor pediu dimdim
Mas jurou fidelidade:
Pede grana só pra mim,
Pros outros é só caridade.

9
Minha sogra solta pum
Mas com tal grandiosidade,
Que teve cinqüenta mais um
Pra prefeita da cidade.

10
Tive um amigo sovina
Que me mostrou seu amor:
Deixou”valva” de latrina
Pr’ eu na minha casa por.

11
Casamento era loteria
No tempo da mocidade.
Hoje é bingo e padaria,
É “voltinha na cidade”.

12
Vou voltar pro meu Crato
Onde mulher se respeita:
Só dá mediante contrato,
Não anel na mão direita.

13
Esse contrato é antigo
No cartório e na Igreja
Exige um padre amigo
De uma roda de cerveja

14
Pois na hora da manguaça
Babau voto de sigilo,
E ocê saberá de graça
Se ela “fê-lo porque qui-lo”.

15
Tenho pena do coitado
Que no banco põe dinheiro:
É guardar frango pelado
Com a raposa do banqueiro.

16
Outrora eu tive “patroa”
E um “amigo fiel”:
Ele mostrou-se à toa
E ela não honrou seu véu.

17
Mas não lhes guardo rancor:
Polindo minha galhada
Encontrei um novo amor,
Meio feia e desdentada.

18
Pois depois da água quente,
Não quis mais gata no cio.
Preferi moça decente
E de quem nem desconfio.

19
Amor, sucesso, dinheiro;
Destes três, só no primeiro
Tu podes confiar
Se dentro em ti, o guardar.

20
Os outros dois, vêm de fora
E ocê não sabe de onde:
É como a moda, o “da hora”,
É comprar passe de bonde.

21
Quando chegar minha hora
Já não irei mais embora
Aqui ficarei porfim,
Quieto, esperando... e FIM

domingo, 26 de agosto de 2007

Romance da Jaqueira Maldita ( Cordel de Guilherme de Faria)



1
Vou lhes contar em verso
Uma estória muito triste,
De tema controverso
E que não aceita chiste.

2
Na curva seca do rio
Tem a casa da desdita
Onde viveu esse trio
Sob a jaqueira maldita

3
Uma moça e seu irmão
Bonitos como ninguém
Moravam neste sertão
Sem precisar de vintém.

4
O seu pai, um cordoeiro,
Com o sisal tinha a lida
E vivia o ano inteiro
De uma única partida.

5
O casal, que foi crescendo
Vivia tão isolado,
Que só a si mesmo vendo
Se tornou apaixonado.

6
Brincando de esconde-esconde
Para melhor se encontrar,
Sempre faziam por onde
Poder logo se abraçar.

7
Que risos! Que transparência
Nestes dois transparecia,
Neste Reino de Inocência
Do amor que os unia !

8
Descontando os desmazelos
E também suas mazelas
Eram criaturas belas
Com os seus longos cabelos

9
O “casal”, assim chamado
Pelo pai tão distraído,
Vivia sincronizado
Como um ser que fosse unido.

10
De nome eram Téia e Lino
Mas só pra efeito, mais tarde,
Quando a faca do Destino
Reduziu-os à metade...

11
Apareceu do outro lado
Desse rio malfadado
Um par de olhos, sombrio,
Que era de um certo tio.

12
Homem mesquinho e frio
Destilou o seu veneno
Que atravessou o rio
E veio ganhar terreno

13
Na mente do seu irmão
Que vivia até então
Naquela mesma candura
Do parzinho de alma pura

14
Produziu-se a corrosão
Do veneno em sua mente,
E também no coração,
Para ver maldosamente.

15
Começou por proibir
As saídas do casal
Que só eram de quintal,
Que nem tinham onde ir.

16
Não podiam simplesmente
Jogar a cabra cega
Ou brincar de pega-pega
Que virou coisa “indecente”.

17
O casalzinho num triz
Mudou de alegre a infeliz
Téia vivia a chorar
E Lino a se revoltar.

18
Então, numa discussão
Que o pai teve com Lino
Aconteceu a explosão
Que selou o seu destino.

19
O jovem de alma exaltada
Não aceitou desaforo
E por ter o seu decoro
Resolveu pegar a estrada.

20
Téia correu uma légua
Atrás do Lino na égua,
Até cair sobre o solo
E voltar do pai no colo.

21
Daí pra diante, se viu:
Essa moça definhou
Foi secando com o rio,
Nunca mais se levantou

22
O velho a enterrou
Chorando de dar dó.
Antes seu cabelo cortou,
Com a garganta num nó.

23
Nó que vinha anteceder
O que viria, afinal,
Depois da corda fatal
Com aqueles cabelos tecer.

24
O sinistro nó correu
Na jaqueira amarrado,
E pelo pescoço, enforcado,
O velho logo pendeu.

25
Um metro acima do piso
Pela corda sem sisal
Pois o velho, afinal,
Já tinha perdido o siso.

26
O povo que aqui se esgueira
Faz da cruz o sinal
Diante daquela jaqueira
Com sua trança fatal.

27
Qual musgo ela ainda pende
Passando despercebida
Pra quem nunca se arrepende,
Pra quem não sabe da vida.

FIM
25/07/2001

Romance do Leitãozinho (cordel de Guilheme de Faria)


O meu cordel ROMANCE DO LEITÃOZINHO é um dos poucos cordéis de minha autoria que se baseiam em estória real, acontecida mesmo, e que me foi contada por uma sertaneja mineira de 17 anos, que era empregada na casa dos meus pais quando eu também tinha 17 anos. Passados quarenta anos eu ainda me lembrava de sua narrativa e então a transformei neste cordel em homenagem à linda Maria, por quem me apaixonei depois de ouvir sua trágica estória, numa noite, na cozinha, enquanto minha mãe dormia. Apesar do título, advirto que é uma história muito trágica. As pessoas muito sensíveis se preparem... ou não leiam.
Romance do Leitãozinho
(cordel de Guilherme de Faria, de 2001)
1
Vou contar ao Seu Doutor
Depois o doutor decida
Se uma tão grande dor
Pode perturbar a vida.
2
Nós vivia na roça
Na beira de uma estrada.
Nossa casa era palhoça,
Meu pai pegava na enxada
3
Eu no fogão ficava
Pra quentar sua comida
Mais tarde levava na lida
Onde meu pai se achava.
4
Minha mãe, se me lembro,
Morreu de febre terçã
E foi embora em Setembro
Quando nasceu minha irmã
5
Minha irmãzinha era loura,
Não pardinha como eu,
Com esta pele de moura.
E meu pai desentendeu.
6
Tinha o olho esverdeado,
A pele branca bem clara,
O cabelo cacheado.
Era uma beleza rara.
7
O meu pai mimava ela
Que vivia embonecada
Com tanta fita e fivela
Como num conto de fada.
8
Nem trabalho, nem estudo
Mas vestida de princesa,
Ela era uma lindeza
Co’as rendas, fitas e tudo.
9
No domingo a gente ia
Na aldeia co’a minha tia,
Todo mundo enfarpelado
Meu pai c’o terno riscado.
10
Nossa prenda da família,
Orgulho que não humilha,
Ia embonecada assim
Loura como um querubim
11
Na Praça, mas não ao léu,
Rodando em fila de dois
No fim da missa, depois,
Meu pai tocando o chapéu.
12
O padre pediu um dia,
Pro meu pai deixar Luzia
Ser anjo na procissão,
Que o povo fazia questão.
13
Minha tia não gostava
Da idéia de exibição,
Ser anjo em casa bastava
Não convinha mostração.
14
De noite junto ao fogão
Eu contava pra Luzia
Estórias de assombração
Enquanto a sopa fervia.
15
Ela me abraçava forte,
E eu queria tanto ela... )
Talvez com medo da Morte
Que ela via na janela.
16
Até que chegou o dia
Em que cessou a alegria
Quando caiu a cortina
Deste teatro da Sina.
17
Uma tarde, o pai roçando
(Eu não sei por onde ando...)
No outeiro se avistava
Seu vulto que ali lidava.
18
Minha querida irmãzinha
Que brincava no terreiro,
Correu para a cozinha,
Bem pra perto do braseiro.
19
Não sei onde ela mexeu:
Pulou brasa do fogão
E o seu vestido ardeu
Como tocha de balão.
20
E inteira ardia ela
Babados, laços, calcinha,
Rendas, fitas e fivela,
Gritando naquela cozinha.
21
Ela correu pro outeiro
Pela trilha do paínho
Marginada por inteiro
De arbustos no caminho.
22
O vento nela batia,
Ela mais e mais ardia
Naquele fogarão
Que até formava um clarão.
23
No pé do meu pai caiu,
Que abraçou o que viu,
E rolaram pelo chão
Em gritos e confusão.
24
Ele voltou com a filha
Nua nos braços robustos
E eu via, pela trilha,
Seus cabelos nos arbustos.
25
Que largando foi ela
Sua linda cabeleira,
Fio por fio na ladeira,
Como grinalda amarela.
26
E morreu devagarinho
Dizendo que me queria,
Estava rosada e gemia,
Rosa como um leitãozinho.
27
Então perdoe, doutor,
Sei que atrapalha essa dor.
Mas...na lembrança
Ainda arde a criança.
28
Agradeço a complacência
Que o doutor demonstrou.
Vou varrer com paciência
A vasilha que quebrou.
FIM
15/07/2001

____________________________

Como os meus cordéis já há muitos anos foram adquiridos pelas bibliotecas das principais Universidades dos Estados Unidos, e sabendo que são estudados por "brazilianists" dessas faculdades, resolvi facilitar um pouco o seu trabalho, adiantando uma tradução que fiz do meu próprio cordel:

The Suckling Pig Ballad
(Guilherme de Faria cordel, 2001)
1
I will tell you doctor
So the doctor decides
If such a pain
It can mess up our life.
2
We lived in the countryside
On the side of a road.
Our house was a hut,
My father took the hoe
3
I was at the stove
to heat his food
I later took it to his work
Where my father was.
4
My mother, if I remember correctly,
She died of tertian fever
And she left in September
When my sister was born
5
My sister was blonde,
She wasn't dark like me,
With this Moorish skin.
And my father was dazzled
6
She had green eyes,
Pale white skin,
The curly hair,
It was a rare beauty.
7
My father spoiled her
Who lived dolled up
With so much ribbon and buckle
Like in a fairy tale.
8
Neither work nor study
But dressed as a princess,
She was a beauty
With lace, ribbons and all.
9
On Sunday we went
In the village with my aunt,
All well dressed
My dad in the striped suit.
10
Our family gift,
Pride that does not humiliate,
She was dressed like this
Blonde like a cherub
11
In the square, but not at random,
Running in a row of two
At the end of the Cult, then,
My father touching his hat.
12
The priest asked one day,
For my father to leave Lucia
To be an angel in the procession,
That the people asked.
13
My aunt didn't like it
This exhibition idea,
Being an angel at home was enough
Showing off wasn't appropriate.
14
At night near the stove
I used to tell Lucia
Scary stories
While the soup was boiling.
15
She used to hold me tight,
(and I wanted her so much)...
Maybe afraid of The Death
That she saw in the window.
16
Until the day came
When the joy ceased
When the curtain fell
From this theater of fate
17
One afternoon, the father working
(I don't know where I was)
On the hill you could see
Figure of her who was there.
18
My dear little sister
That was playing in the garden
Suddenly ran to the kitchen,
Right next to the brazier.
19
I don't know what she did
Ember jumped from the stove
And her dress burned
Like a balloon torch.
20
And she burned it all down
Ruffles, bows, panties,
Lace, ribbons and buckle,
Screaming in that kitchen.
21
She ran to the hill
On daddy's trail
Totally marginalized
Of bushes on the way.
22
The wind hit her
And she burned more and more
In that big fire
Which even formed a flash.
23
At my father's feet she fell,
Who embraced what he saw,
And they both rolled across the gound
In screams and confusion.
24
He came back with his daughter
Naked in his strong arms
And I saw, along the way,
Her hair in the bushes.
25
Because it was falling
Her beautiful hair,
Thread by thread on the slope,
Like a yellow garland.
26
And she died slowly
Saying she wanted me.
She was pink and moaning,
Pink like a piglet.
27
So forgive me, doctor,
I know this pain disturbs
But... in my memory
The child still burns.
28
I appreciate the complacency
That you, doctor, demonstrated.
I will sweep with patience
This bowl that broke.
THE END
07/15/2001






Romance da Candiléia (cordel de Guilherme de Faria)



1
Ó sol perfeito, redondo,
Deste sertão inclemente!
Ó cachoeira de estrondo,
Paulo Afonso, meu parente

2
Segundo ouvi contar
Por um primo distante
Que se chamava Dante
(tá muito fácil rimar)!

3
Vou afinando os meus versos,
Que de viola não entendo...
A música tem seus perversos:
Poetas que não recomendo.

4
Eu sou mais um, mas dos bons,
Daqueles que tiram rima
Como água de pedra, e sons
Como a chuva cai de cima.

5
Por isso, aproveitando
Que hoje estou afiado,
Vou mais um caso contando,
Seja triste ou engraçado.

6
O melhor é quando os dois
Se unem em casos contados...
Tragicômico, pois,
Que é o melhor dos dois lados.

7
Era uma vez (velho prólogo
Que ainda é um bom começo
Para evitar o tropeço
De começar desde logo)

8
Uma moça sertaneja
Sem nenhuma brotoeja,
De pele morena, trigueira,
Sem verrugas, nem coceira.

9
Se chamava Candiléia,
Nome pouco religioso,
Parecendo de uma atéia,
Que logo ficou famoso,

10
Pois no sertão de Marias
Qualquer diferença, é fato,
Causa logo espalhafato,
Se não causa romarias.

11
Mas beleza, este é o ponto,
Perigoso, na verdade,
Porque em qualquer idade
Vira lenda, vira conto.

12
Então ( vocês viram tudo)
Ela havera de causar
Confusão neste lugar
De feias e de parrudo.

13
Candiléia feia e véia
Não havéra de ficar,
Seu destino era uma teia
Já tecida no tear.

14
Foi na festa do Divino
Que tal fato assucedeu
Quando um moço muito fino,
Estrangeiro, se envolveu

15
Pela beleza da moça
E logo se apaixonou;
Era paulista e sem roça,
E o povo se revoltou.

16
Candiléia desinbesta
Por uma noite e um dia,
Sua carne era uma festa,
Uma praça de alegria.

17
O sol torna e ilumina:
Morrer já podia então,
Pois o povo do sertão
Decretara a sua sina.

18
Candiléia, princesinha,
Não sabia a sua sorte
Pois o príncipe-consorte
A tinha feito rainha.

19
Ao descer a ladeira
Com o olhar sonhador
Depois de uma saideira
Que teve com seu amor

20
Foi então atropelada
Por cavalo e cavaleiro,
Ficando meio pelada,
O seio de fora, inteiro.

21
O povo então cortou
Esse seio e o venerou
Com o “Dia de Candiléia”
E praça com o seio dela

22
Transformado em touceira
Redondinha, bem tosada,
Bem defronte à encruzilhada
Onde se faz uma feira

23
Que vende um certo confeito
Com forma de seio e feito
Com “doce de candiléia”,
Doce como uma colméia

24
Mas co’aquela ferroada
Na língua feito pimenta,
Que é coisa que esquenta
E faz lembrar a coitada

25
Cuja beleza durou
Por uma noite e um dia,
Pr’um gringo que a tocou
E a fez morrer na alegria.

FIM
06/03/2005

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Máximas do Trovador Sertanejo (de Guilherme de Faria)




Máximas do Trovador sertanejo
(cordel de Guilherme de Faria )


1
O barro de que foram feitos
Os homens logo refletem:
Correndo para outros leitos
As águas do Tempo os derretem.

2
Seja predador ou presa,
Seja santa ou prostituta,
Todos perdem a beleza
Na triste “vecchiaia brutta”.

3
Por armas tendo uma queda
Por elas morres ligeiro
E se amas a moeda
Morrerás pelo dinheiro.

4
Há outra realidade
Que me parece maldita:
Pois a pior verdade
É a que não pode ser dita.

5
Homem e mulher, no início
Como um só ser se renova;
Mamilo de homem é resquício
E o fiofó é a prova.

6
Mulher de sapateiro
(Haja visto a Maria Bonita)
É chegada em aventureiro
Como aquela brava Anita.

7
Largando marido poltrão
(não queriam usar o quepe)
Uma foi com o Lampião
Outra foi com o Giuseppe.

(Variante):
Largando marido poltrão,
Sem ligar que a gente malde,
Uma foi com o Lampião
Outra foi com o Garibaldi

8
Cuspir deixa a boca seca
Não dependendo do ano
No nordeste dá a Seca
Mas no sul dá Minuano.

9
Se vejo mulher bonita
Fico logo abalado
É uma espécie de desdita
Ser dest’arte desastrado.

10
A Beleza é um mistério
Mormente neste sertão
Um olhar que é refrigério
Ou calor de combustão.

11
A ruindade de alguns
É outro mistério profundo
Ser bom, mas tratado a puns,
Ser mal: aplausos do Mundo!

12
Ao Cristo, se a Terra volvesse
Pediriam “saite” e “email”,
Arroba, com, o estresse,
E conta no bar do Ismail.

13
Encontrei um homem santo
Que preferia calar:
Com medo de causar pranto
Procurava nem piscar.

14
Também não fazia o bem
Pra não ser mal enfocado
Pois o bem pode também
Ser um mal pro outro lado.

15
Resultado: no Inferno
Ele é que foi rejeitado,
Ficando de fora, sem terno,
Sem gravata e sem calçado.

16
Quem nunca se apaixonou
Não pode falar de amor
Como quem não engatinhou
E já quer barco a motor.

17
A gente apaixonar-se
É sinal de humildade:
Acreditar na bondade,
Na beleza, e abandonar-se.

18
Colocar o humano alto
É uma bela ingenuidade,
Que enaltece o arauto
E esmaece a potestade.

19
Pra servir o ser humano
É preciso, pois, candura:
Acreditar na mistura
Como aquele franciscano.

20
Seu herdeiro, aquele um
Que se pode navegar,
Já deu tanto ao bem comum,
Que já querem represar.

21
Não sei se me faço entender,
Vou então simplificar:
Para o pobre enriquecer
É preciso saber dar.

22
Só conservamos o herdado
Deixando o cofre bem oco.
Se sentares no engradado
Só terás um ovo choco.

23
Se mantiveres tua Arte
Teu Bem e tua Verdade
Só Deus vai procurar-te
Reivindicando a herdade.

24
E a Ele devolverás
O que era teu por empréstimo.
Sendo que os juros terás,
Devolvidos por seu préstimo.

25
A vida é, bem no fundo,
Escolinha do Sertão:
Amar tudo e todo mundo.
Pra depois vestir gibão,

26
Que a espinhosa catingueira
Terás de atravessar
Pois a vida é uma carreira
Para um novilho laçar.

27
Esse novilho, atenção,
Será o teu Ideal,
Que laçado, cai ao chão
No meio deste areal.

28
Mas, se o tratares bem,
Mesmo sendo do patrão
Não ganharás só vintém,
Mas a honra do Sertão!


Nota do autor:

Fui questionado por um purista do cordel, quanto a esse texto, que ele considerou "trovas encadeadas", e não "cordel verdadeiro", pois além de serem estrofes e não sextilhas com sete sílabas no verso, etc, não contavam uma história linear. Mas acontece, que segundo a doutora em letras Marcia Novaes, da USP, na sua tese de doutorado sobre o Cordel, este é um gênero editorial e não um gênero literário, tese que ela provou sobejamente com grande pesquisa até na torre do Tombo, em Portugal. Tudo já foi escrito em Portugal e Espanha desde o século XVI, em forma de cordel, isto é em folhetos, em edições do autor: contos, novelas, romance folhetim, sermões, trovas, teatro, sonetos, etc. A condição para ser cordel é ser literatura popular, vendida nas ruas, em forma de folhetos de papel barato, ilustrados ou não. As xilogravuras das capas dos folhetos nordestinos são um notável requinte e tradição em perigo.

domingo, 12 de agosto de 2007

Romance da Rendeira ( Cordel de Guilherme de Faria)


( Dedicado ao poeta mineiro Claudio Bento,
meu amigo, e grande intérprete
do seu encantado Vale do Jequitinhonha)

1
Chora viola na alma,
De mim, que canto sem ela.
Canto a seco, leio a palma
Pinto sem tinta e sem tela.

2
Ando por esse Brasil
Que é todo imenso sertão:
A “sociedade civil”
Não é civilização.

3
Pelo menos por enquanto
Com tanta bala perdida
Vou voltar para o meu canto
Antes que aqui perca a vida.

4
Lá no sertão verdadeiro
Pelo menos sei o rumo
Basta olhar um vaqueiro
E sei o que é ter prumo.

5
Se quero ir para o norte
Lanço a palha, lanço a sorte
O caminho eu mesmo faço
Jogo cartas, jogo laço.

6
E no final ganho a vida
Em toda a sua acepção,
Ganho fama e a acolhida
Dessa gente do sertão.

7
Por isso, pra começar
Vou afiando a viola
Dentro da minha cachola
Para um causo desfiar.

8
Me dê um mote, envista,
Qualquer um: ciúme ou contenda.
Não sou nenhum repentista
Mas escrevo de encomenda.

9
Ciúme? tá bem, eis o mote,
Embora pareça banal
Pois se queres logo um lote
Basta folhear jornal.

10
Mas se queres mesmo um caso,
Vou contar uma tragédia
Pois ciúme é muito raso
Se não entrar na Enciclopédia.

11
Havia na minha aldeia
Uma única beldade,
Moça prendada rendeira,
Leal como a lealdade.

12
Jamais trairia alguém
Quanto mais o seu amor,
Mas foi do ciúme refém,
Causadora de rancor.

13
Sem lamentar o seu fado,
Sem levantar os olhinhos,
Quanto mais olhar pro lado
Com tantos urubuzinhos.

14
Ciúme, que coisa fútil,
Se não fosse “catastrófe”
Para falar desse inútil
Necessito nova estrofe.

15
Desculpem a rima falsa,
Falsa como o mesmo ciúme
Que só pensar dá friúme,
Mala vazia, sem alça.

16
Pois a nossa heroína
(vou chamá-la de Malvina
Para facilitar a rima
Em mais dois versos de cima)

17
Era pura e verdadeira
Não merecia o cutelo
Com que foi morta na esteira,
Por um que nem era Otelo.

18
Tudo começou com a renda
Que Malvina enredou
Por uma falsa encomenda
Que um malungo inventou.

19
Era bem fácil fazer
A moça se dedicar
A um trabalho de tecer,
E por isto se apaixonar.

20
Cada trabalho de renda
Era por si um louvor
À beleza e ao amor,
Embora estivesse à venda.

21
Mas aquele pervertido
Sendo esperto e atrevido,
Aproveitou-se do fato
E comprometeu tal ato.

22
Todo dia vinha olhar
O andamento da trama,
Punha sugestão no ar,
E muito louvor, o sacana.

23
Com isso comprometia
O trabalho da artezã
Com a sua companhia,
Com a sua teia vã.

24
Eis, senhores, a maldade
Contida no sedutor:
Para enrolar uma beldade
Basta um fio condutor.

25
E assim, qual Ariadne
Às avessas, desfiou
O fio da teia de Aracne
Pro labirinto que armou.

26
O noivo da bela Malvina
Afinal desconfiou
Dessa teia muito fina
E de quem a encomendou.

27
Aquilo era uma obra-prima,
Só podia ser paixão;
Traição, ó triste rima
Para um causo do sertão!

28
Pois onde entra a maldita
Sai o amor, entra a desdita
E logo assoma a morte
Co’ algum instrumento de corte

29
Como cutelo ou sovela
Como foi no caso dela,
Que o noivo era sapateiro,
Nas horas vagas, coveiro.

30
Malvina naquela noite
Cujas horas como açoite
Demoravam a passar
Esperando o seu penar,

31
Sabendo que o confronto
Viria na hora do sono
Pois o ciúme, seu patrono,
Tinha atingido o ponto

32
Mais alto, naquela mente
Do sapateiro demente
Que naquela mesma hora
Resolvera: “É agora!”

33
Malvina fez uma prece
E cantou uma canção
D’um salgueiro que, parece,
Não existe no sertão.

34
E depois deitou na esteira
Com a mão no coração:
Ele assomou na soleira
Com a sovela na mão

35
E perguntou: “Já fizeste
A oração que lhe cabe?
Pois agora tu me deste
A permissão que te acabe.”

36
E degolou a ovelhinha
Que só um suspiro deu,
Morrendo a pobrezinha
Por perfecionismo seu.

37
Pois seu único pecado
Foi o amor e a candura
Que aquela alma pura
Pôs num trabalho arretado:

38
Uma renda, uma teia,
Exposta numa parede
Do museu da nossa aldeia
Que tem renda... e tanta rede!

27/05/2005

quarta-feira, 8 de agosto de 2007

Romance da Pianista (cordel de Guilherme de Faria)


1
Na vila do Salgueiro
Do sertão pernambucano
Nasceu tocando piano
Uma moça de ar trigueiro.

2
Sem ter tido professor
Desde pequena ela tira
Umas musicas de cor
Que ninguém jamais ouvira.

3
Além disso era um delírio
De beleza deslocada
Era pura como um lírio
Que nasce na beira da estrada.

4
Tanto primor poderia
Despertar certa malícia
Mas isso não acontecia
Pois sagrada parecia

5
Nas festas de sua aldeia
Debaixo da lua cheia
Ao piano, no tablado,
Pro povo compenetrado.

6
Até que um dia passou
Por ali um forasteiro
Com ar janota e matreiro
De quem muito viajou.

7
Com costeleta comprida
E um bigodinho, fumava
Numa piteira estendida
Que ele nunca largava.

8
Declarando-se empresário
Ou coisa parecida
Tava mais para corsário
Ou piloto suicida.

9
No entanto ele cantava
Como sereia ou graúna
Pois logo ele acenava
Com a fama e a fortuna.

10
Pra reforço de argumento
Exibiu por um momento
De artistas um dicionário
Dos quais seria empresário.

11
Mostrou até umas tiras
De um jornal recortado
Com fotos de duplas caipiras
Que teria alavancado.

12
Tão hábil era o finório
Que aquela modesta família
Preparou “festa velório”
Para a partida da filha.

13
Imaginem , na verdade
A tristeza que viria,
A desgraça e a saudade
Que daquilo adviria.

14
Em cima do velho piano
Um rolo de notas deixou
Pelo contrato de um ano
Que, adiantado , pagou.

15
Poderia nem contar
O resto desta estória
Pros que querem projetar
Um final de vida inglória

16
Mas de forma inusitada
A moça passou no teste:
Muito amou e foi amada
Por aquele cafajeste.

17
E se tornou concertista
De fama internacional
Com sucesso como artista
E na vida emocional.

18
E depois de mil turnês
Voltou à sua Salgueiro
Como heroína que fez
Sua imagem no estrangeiro.

19
Seu pai, que estava instalado
Num belo sítio comprado
Com a pensão fiel da filha,
A estrela da família,

20
Contratou até festeiro
E o povo foi convidado
Para ouví-la no terreiro
Num piano encomendado,


21
Como um negro no deserto
Pelas galinhas cercado,
Com um galo empoleirado
Em cima do tampo aberto.

22
Afastado aquele galo,
Se não me engano, tenor,
A moça, sem intervalo,
Tocou e tocou com ardor.

23
E depois, ovacionada,
Foi deitar-se bem cansada
Na suíte preparada,
Após reza emocionada.

24
E adormeceu a sonhar,
Para não mais acordar
Pois seu coração parou
E o Concerto terminou.

25
Foi de manhã encontrada
Tendo na face estampada
Uma risada contida
De Monalisa Dormida .

26
Desconheço o sentido
Dessa fábula ilusória
Mas garanto o acontecido:
Não sou de inventar estória.


FIM


12/04/2002

Romance da Travessia (cordel de Guilherme de Faria)


Cordel de autoria de Guilherme de Faria,
baseado n'A Divina Comédia, de Dante Alighieri.

1
Pr’este auditório seleto
Minha estória vou contar
Fazendo o relato completo
Pra quem quiser me escutar.

2
Vou tratar da travessia
Que, em Deus, logrei completar
Quando há anos já não via
Saída pra algum lugar.

3
Tendo perdido a estrada
Me vi perdido no Nada
De uma caatinga anoitada
Entanto que ensolarada.

4
Estando sem eira nem beira
Mas com meu gibão trajado
Chapéu de couro e perneira
Todo assim ataviado

5
Criatura preparada
Por fora pra travessia
O espinheiro da jornada
Por dentro me parecia.

6
Mas volto mais pro início
Quando um Vate aparecia
Uma figura de hospício
Romeiro, poeta e guia.

7
Seu nome era Virgiliano
Encontrei-o num portal
Seu ponto há mais de um ano
Dormindo sobre um jornal.

8
Assim que me viu chegar
Esse portal apontou
Convidou-me para entrar
E o portão empurrou.

9
Em cima, pregada na tora
Se via uma tabuleta:
“Não adianta esperá aí fora,
Ou adentre ou não se meta “

10
Aquilo era uma ruína
Que se abria para o Nada
Ficava no fim da estrada
Seguida de uma ravina.

11
Eu que andava perseguido
Por um casal inimigo:
Leopardina e Lobão,
Só restava a aceitação.

12
Fiz o jogo do louquinho
E segui o seu desmando
Ainda antes do caminho
Fui cercado por um bando

13
De mendigos, na porteira
Que dali nunca saía
E de mosca varejeira
Infestado, se esvaía.

14
Perguntei ao novo guia
A razão dessa agonia
E quem era aquela turba
Que a minha vista perturba.

15
Virgiliano deu de ombros
No meio daqueles escombros
E declarou sem alarde:
“Esse é um povo covarde”.

16
“ Olha e passa”, ele me disse
Com ele então concordei
“Passa como se não visse”
E o portal atravessei.

17
E me vi numa caatinga
Mais dura que aquela estrada
E pelo sol abrasada
Como a goela pela pinga.

18
Só se via urubutinga
Voando na contramão
Pois no meio da caatinga
Só ossos brotavam do chão.

19
Naveguei nas catingueiras
Pois eu tinha o meu gibão
E nas pernas as perneiras
Assim como as costas da mão

20
Virgiliano, como a palma
De sua mão conhecia:
Sem avistar viva alma
Ele nunca se perdia.

21
Mas pra atravessar o atoleiro
De um açude ressecado
Contamos com um barqueiro
Que tava meio atolado.

22
Usando uma prancha no barro
Arrastada c’uma corda
Levou-nos até a outra borda
Cobrando até meio caro.

23
Remontando a barranca
E reentrando no espinheiro
Deixamos aquele barqueiro
Sem barco e sem Carranca.

24
Disse: “Dantino, aprecia,
Mais adiante a ventania.
Nessa altura da jornada
Vê se aceita a empreitada”.

25
Dobrei-me então na sela
Agarrando no pescoço
Enquanto voava destroço,
Touceiras e areia amarela.

26
O pobre do meu Pintado
Mais magro que um rocinante
Também estava assustado
Mas teimava em ir adiante.

27
No meio da ventania
Eu quase que não via
Um casal que se abraçando
Já estava meio voando.

28
Esse par de retirantes
Se mantinha como dantes
Apaixonado, se via,
No meio da ventania.

29
Assim que me aproximei,
O seu nome perguntei.
“ Sou Francisca, do Reimão
-Se apresentou - “ e o Paulão”.

30
Indaguei do seu destino
E porquê do desatino
De andar naquele vento
Que aterrava o pensamento.

31
A Chica então parou
Parecendo que pousou
E me disse entre soluços
Mas direto e sem rebuços:

32
“ Seu moço, vou-lhe contar
A desgraça que me guia,
Que decerto não fugia
Se eu pudesse optar.”

33
“Paulão é o meu cunhado,
Meu marido, um deformado,
Depravado e ciumento,
Mais burro do que jumento.”

34
Lanxoto é o seu nome
Que a Peixoto nem chega
Tá é mais para Veiga
De covarde o sobrenome.

35
Nos pegou lendo na cama
Aventuras de cordel
Nos chamou “par de bordel”
E fez juz à sua fama.”

36
Sua arma era um canhão
Pela sua proporção
-Arma, virum que cano?
Me lembrei do Virgiliano.

37
“Agora estamos perdidos
Sem teto e também sem pouso
Não encontramos repouso
Tamos meio arrependidos.”

38
Eu que ouvia seu relato
Tava cansado, de fato,
E ficando emocionado
Caí no chão, desmaiado.

39
Recobrado, num tropel,
De galope, um povaréu
De jagunços nos cercou
De modo que me assustou.

40
Apontando seus fuzis
Escapamos por um triz
Quando viram Virgiliano
Que trataram como mano.

41
Virgiliano trocou verso
Com um deles como irmão
Um tal chamado Quirão
E outro chamado Nerso.

42
Depois o chão, na andança
Da travessia de novo
Deixando aquele povo
Sem saudade e sem lembrança.

43
Virgiliano deu ciência
Que aquele plaino achatado
Tava assim denominado:
“Raso da Violência”.

44
Ali não havia rosas
Mas um espinheiro danado
Que estava povoado
De umas megeras furiosas

45
Que puxavam pelos braços
No meio dos espinhaços
Um pobre meio sem vida
Candidato a suicida.

46
Evitamos a polêmica
Para que o povo se entenda
Percebendo que a contenda
Parecia meio endêmica.

47
Mais adiante vimos logo
Uma malta em retirada
Que parecia assustada
C’uns marimbondos de fogo.

48
Então perguntei ao guia
Sobre a turba malfadada
A que violência devia
Sua triste debandada.

49
Virgiliano, com dureza
Contou que eles maldiziam
A Aldeia em que viviam,
Deus, a Arte e a Natureza.

50
E que um tal de Capanão
Continuava orgulhoso
Levando o povo raivoso
Blasfemando no Sertão.

51
Preferi desconversar
Pra frente continuando
Que os marimbondos no ar
Já me estavam incomodando.

52
Seguindo o que o Guia rege
Encontramos logo o rio
Fregetão, que nada frio
Revolto, tão, que era um frege.

53
Com Virgiliano comento
Que esse rio de lágrimas
Do humano sofrimento
Fervia como fermento.

54
Seguimos observando
Um velho que o navegava
Sozinho no barco remando
Como o Tempo, que levava.

55
Prosseguindo, não esperava
Encontrar uma caterva
Que sem fumar qualquer erva
Mesmo assim desmunhecava.

56
Brunão Ladino, Pricianos
Chico do Cursio, André
De moças com jeito até,
Davam mês e davam os anos.

57
O Fregetão desabando
Em cascata revelava
O ardente Ardobrando
Que na ducha se banhava.

58
Deitado na areia quente
Pra quem tinha tal prestígio
Tava pelado, indecente
Como o rústico Aprígio.

59
Hermes Bolseiro vinha
Falando em Rusticúgio
Que não dava o dito cujo
Só pra não perder a linha.

60
Até vi, se desnudando,
Bonito, na cachoeira
O Gerião, mergulhando,
Como cobra, sem esteira.

61
Eu já conheço a fraude
E a beleza do moleque
Que vive passando cheque
Sem ligar que a gente malde.

62
Mas pior, os usurários
Que não dão tostão pras Artes
Banqueiros que são vigários
Na areia esquentando as partes

63
Gerião, que me levou
Nas costas, o rio abaixo
Lá de cima mergulhou
A garupa onde me encaixo.

64
Saímos do “Violência”
Esse Raso, sem saudade,
Chegando no “Fraudulência”
Do Gerião a herdade.

65
Maleborges: sedutores
De açoite sofriam dores
Rufiões, aduladores,
Poupados só os atores.

66
Jasão, da Medéia, também
Não do Teatro, o próprio:
Pra não largar mais ninguém
Seduzindo como ópio.

67
Ali vi Taís, na Zona
Dos seus membros amazona.
Na verdade, devotada
Só ao prazer da moçada.

68
Depois, pegamos “Simão”
Raso onde vi um ladrão
De cálices e ostensórios,
Com terços, de suspensórios.

69
Encontramos Bonifácio
Padre que até vender
A Paróquia achava fácil
Difícil era devolver.

70
Na Caatinga divisei
Que até desentendi
Um vigarista nissei
Cabeça virada, eu vi.

71
Vi ali Miguel Chicote
Um Mágico do Sertão
Que metido a ler a sorte
Acabou um charlatão.

72
Depois vi uns funcionários
Perdidos como a gente.
Errando a trilha acabaram
Num betume fervente.

73
Malacoda então na trilha
C’uns matutos nos ajuda
Uns diabos, gente muda,
Escolta por mais de milha ,

74
O que era até porreta
Se não fosse um porcalhão,
Que atravessando o Sertão
“Fazia do cu trombeta .”

75
Conheci um tal João Pulo
Do Tebaldo um agregado
Que fazia o mal mandado
Mas deixando rastro nulo.

76
Do “Hipocrisía” oriundo
Vinha todo encapuzado
Com um manto bem pesado
Dourado por sobre chumbo.

77
Eu e o Vate, entrementes
Encontramos um ladrão
Que pisando umas serpentes
Se sentia em combustão.

78
Vânio Fuça era o seu nome
Que roubara uma Igreja
Um valente de renome
Perder a honra, ora veja...

79
E ainda vem me dizer,
Mordido pela malícia
Da maldade, pode ser:
Que me buscava a polícia.

80
Encontrei um cavaleiro,
“Caco”, ladrão e embusteiro
Coberto de cascavéis
Enrolado nos anéis.

81
Achei a visão confusa
Pra minha mente obtusa
Calarei o acontecido
Cobra e gente é parecido.

82
Encontramos dois vaqueiros
Ulisse e Diomé chamados,
De gibão, ataviados
Mas no espinho o tempo inteiro.

83
Essa dupla embusteira,
Suspendeu as nossas falas
Num cavalo de madeira
Enrolados numas palas.


84
Ulisse narrou aventura
Do tempo de marinheiro
Muito longe do terreiro
Da Caatinga, terra dura.

85
Naufragou c’o a marujada
Afundando capitão:
Que mentira mal contada!
Como é que tá no Sertão?

86
Monta-Feltro apareceu:
Jagunço e frade, danou
Pois mau conselho ele deu
E o Bonifácio pecou.

87
Chegamos então na chapada
Onde vi gente ferida
Como por golpes de espada
Por confusão na vida.

88
Mau-o-Mé na Caatinga
Me contou a sua cisma
Se dou palpite ele xinga
Não agüento seu carisma...

89
Ele mandou um aviso
A frei Doce, impenitente
Pra que tomasse siso
Se não ia ficar quente.

90
Depois vi Beltrão da Bórdia
Repentista de primeira
Que instigou a discórdia
A dois Henriques na feira.

91
Pai e filho foram à guerra
Brigando por uma terra
Mau papel pr’um trovador,
Perdendo do povo o amor.

92
E agora a cabeça solta
Despegada do pescoço
Tão avoado que, em volta,
Vê o Talião sem esforço.

93
Depois vimos falsários
Passando as suas notas
No deserto esses janotas
Destoavam e eram vários.

94
Um até chumbo dourava
Fazendo de milagreiro
Mas seus males não curava:
De feridas, por inteiro.

95
E um Grifolino com a peça
De um pavão misterioso
Pra voar belo e formoso
Um Alvinho, créu à beça.

96
Vou agora resumindo
Deixando de relatar
Gente que vinha vindo
Querendo causos contar.

97
Vou então narrar um fato
Que tocou-me mais fundo
Pois ouvindo esse relato
Hesitei voltar pro Mundo.

98
Bem no meio da aridez
Encontrei o Ugolino
Um rico velho que fez
Da desgraça um violino.

99
Conspirando na surdina
Foi preso a céu aberto
E agora desatina
De fome nesse deserto

100
Morrendo à mingua estava
Com dois filhos e dois netos
Quadrilha que o acompanhava
Encolhidos como fetos.

101
Devorando a própria mão
Definhavam no Sertão
Perseguidos, sem um prato,
Pelo arcebispo do Crato.

102
Rogério, esse prelado
Um tirano depravado
Manteve, forjada ou não,
Denuncia de traição

103
Pra se livrar do Ugolino
Antigo vice-prefeito
Um bode quase perfeito
Pr’as maldades de um felino

104
Esse tigre do Crato
Fez então pagar o pato
Seu antigo funcionário
Triste correligionário.

105
E o Ugolino vê morrer
De fome filhos e netos
Perdidos nestes desertos
Onde o povo há que viver.

106
Me afastei, condoído
Já que estou proibido
Até de dar de comer,
Só podendo olhar e ver.

107
Saindo do Antenora
No Tolomea, agora
Falando com Frei Alberico
Que eu pensava vivo e rico.

108
Me contou o espantoso
Que seu corpo ,em sua terra
Mamulengo de uma fera
E a alma aqui, sem pouso.

109
O Miguel e o Brancadouro
Aqui, nadando em betume,
O Branca , no Logradouro
Ainda é dono de um curtume.

110
E no Raso da Judeca
Do Judas o fiofó
Andando por Seca e Meca
Agora só gelo em pó.

111
Dois jagunços traidores
Bruto e Cassio, grão-senhores
Também ali atolados
Pelo Cujo mastigados.

112
Gritei nessa confusão
Ao som da mastigação
“Virgiliano, socorro!”
“Quero sair, senão morro!”

113
E o Poeta, prudente:
“Dantino, do terminal
Não se sai pelo portal.
Você tem de ir pra frente!”

114
Vi o Cujo impressionante
Asa abrindo a todo instante
Para gelar com seu Vento
O calor do pensamento.

115
Mas olhando respondi:
“Virgiliano, então vamos!”
E ele, virando, sorri:
“Vê, Poeta: já passamos!”

116
Na subida do Funil,
Invertida a fera vimos;
Já por cima o toldo anil
Co’as estrelas como mimos

117
Sobre a terra abençoada.
Só rever a minha amada
A Divina, desprezada...
Abraçá-la nesta estrada!

118
E cedinho me encontrei
No seu rancho e separei
Do Vate c’um abraço forte
Qual se ele fosse pra Morte.

119
Depois, café com a Divina
Com média, pão e manteiga.
Ah! como estava meiga
Me passando a margarina!...

FIM

22/05/2002

terça-feira, 7 de agosto de 2007

Romance do Professor (cordel de Guilherme de Faria)


1
Agora meu povo amigo
Vou contar estória nova;
Tô cansado do antigo
Mas continuo na trova.

2
Nessas andanças no mundo
Encontrei muita poesia,
Amor, sentimento profundo,
Tolice também, que enfastia.

3
Encontrei a bizarria
Desse povo semi-louco
Que vive de cantoria
Mas ganhando muito pouco.

4
Achei amor desprendido
Nas mulheres e poetas
Mas posso ficar ofendido
Se nos chamarem de ascetas.

5
Por isso, antes do causo
Vou passar o meu chapéu:
Se houver muito descauso
Paro aqui e vou ao léu.

6
Ao Léo, que fique bem claro,
Que este é amigo raro
Pois me faz sentar na mesa,
Sempre teve a gentileza.

7
Na casa dele encontrei
Além de um belo prato,
O tratamento de um rei
Mas sem trono e espalhafato.

8
Espalhafato é o que sou,
Contando causos reais,
Não de rei que voltou,
Como Ricardo, e que-tais,

9
Mas de gente comum,
Não comezinha, isto não,
Pois prefiro soltar pum
Na casa de burguezão;

10
Mas de gente verdadeira
Embora pobre ou bisonha
Pois passo sempre a peneira
Antes de fazer pamonha.

11
Dito isso, vou contar
A estória de um professor
De continha de somar
Mas também bom orador.

12
Vivia em Tracunhaém,
Muito feliz sem vintém
Ensinando o pobre povo
A saber tudo de novo.

13
Quero dizer: a rever
Aquilo que o povo já sabe
Pois refletir é saber
Para que nunca se acabe.

14
Foi então que lhe coube
Algo assim, que nunca soube:
O amor, na forma ideal
De uma beleza fatal.

15
A filha de um coronel
Que contratou seu ofício
De preencher lousa e papel
Para efeito de comício.

16
Mas a bela eleitoreira
De seu pai “Maquiavel”
Estava mais pra faceira
Do que para Rapunzel

17
Cismou enredar na teia
O pobre do professor,
Fazer dele um par de meia
Para o seu pezinho pôr.

18
Pois se o moço era pobre
Era cheio de saber,
Só faltava encher de cobre
Para um marido render.

19
O pai, no início estrilou,
Mas nada negando à princesa
Percebeu e concordou
Com tamanha esperteza.

20
Era um plano muito além,
Ter diplomado na cama
De sua filha e refém
Da política e da fama.

21
Era, vocês perceberam,
Um caso de tentação,
Mefistófeles que eram,
Redivivos no sertão.

22
Ma o nosso professor
Já tava mais que enredado
Pois que tava apaixonado,
Tava pra lá do amor,

23
Coisa muito perigosa
Para um pobre orador,
Que dominava a prosa
E em poesia era um horror.

24
Começou a se afastar
Do povo que o venerava;
A pé não queria andar,
No Mercedes namorava,

25
No carro, digo, do chefe,
Que tinha até chofé
Que era um mequetrefe
De paletó e boné.

26
Parou de ir à escolinha
E o povinho abandonou,
Tava meio almofadinha
Quando o padre o encontrou

27
E lhe ensinou novo texto.
Disse direto e cabal:
“Professor, estás no mal,
Debaixo de sela e cabresto.”

28
“Não te envergonhas, bedel?
Tu que eras professor
Agora és um pastel,
De vento com mal odor.”

29
“Puseste o teu saber
A serviço do poder.
Traíste a causa do povo,
Que era só saber de novo”

30
“Aquilo que estava limpo
E precisava aflorar,
Tua missão era garimpo
Só devias peneirar."

31
“Agora, que coisa à toa,
Não passas de um pé de meia
E o pezinho da patroa
Te deixa de cara cheia.

32
“Olha, tens uma saída:
Volta pro povo ainda agora,
Pois tua vida te espera,
Ou preferes ir embora?”

33
“Se largares essa lida
De falsidade política
Salvarás a tua vida
Que já era quase mítica”

34
“No bom sentido, e agora
O mito virou mentira
E o povo sente e deplora
O desfecho que não vira”

35
“No horizonte do bem
Que esperava do seu mestre,
Que virou um nhenhenhém
De político rupestre,”

36
“Quero dizer, primário,
Não como o bom professor,
Que guardava num armário
Cartilha e lápis de cor”

37
“E no cofre da cachola
Não tinha nenhuma esmola,
Mas tesouros de verdade
Pra oferecer pra cidade.”

38
“Agora pega tua mala
Ou deixa pra lá, não importa,
Volta pra escola e pra sala
Que ficou vazia e morta.”

39
“Teus alunos, as crianças,
Tudo perdoam (ou esqueces?)
Se devolvas esperanças
E ensines novas preces.”

40
Assim falou nosso padre
Para o jovem professor,
E produziu um milagre:
Fez retornar o amor.

41
Pois aquilo era paixão,
Não o amor que ele queria,
E o professor sabichão
Voltou à sabedoria.

42
E na manhã seguinte
Vestindo o velho terno,
Sem gravata e sem requinte,
E sem colete no inverno,

43
O professor adentrou
A sala meio arruinada
Onde tava a criançada
Que em alarido o saudou.

FIM

06/03/2005

segunda-feira, 6 de agosto de 2007

Romance da Vidência (Cordel de Guilherme de Faria)


1
Preparem a sua emoção
Para um caso do Destino
Vou usar todo o meu tino
Pra cantar sem violão.

2
Só preciso achar o tom,
Que a música deste poema
Cria seu próprio sistema
De silêncios e de som.

3
Havia nesta divisa
Uma cigana arretada
O seu nome era Rafisa
Parecia alumiada.

4
Tinha o dom da profecia
Mas, cassandra malfadada
Era sempre acreditada
Só depois que acontecia

5
Aí houve o incidente,
Que chegou no seu terreiro
Um capiau renitente
Que era um pobre ferreiro.

6
Vinha montado sem sela
E embora fosse cascudo
Era bonito e parrudo
Sem papos nem xurumela.

7
Rafisa (quase esquecia)
Era um pouco desgrenhada,
Também tinha a latumia
De uma Medusa da estrada.

8
Quer dizer: era bonita
E até muito faceira
Descontada a cabeleira
E a saia sarapintada.

9
O matuto desmontou
E tirou o chapéu de couro
Parou um pouco e olhou
Com aqueles olhos de mouro.

10
“Siá Rafisa, venho vindo
De muito longe, seguindo
A fama de vosmecê,
Queira pois me recebê.

11
Venho da Pedra Preta
Um raso onde num chove
Desde a noite do cumeta
Que ainda o povo comove.

12
Mas num vim pedir trovão
Que num é de sua alçada
É lance de coração
Ou de vida amargurada.

13
Me deixa entrá que lhe esprico
Siá Rafisa, ocê me escuta,
E se falo, não discuta
Que se calo, me comprico.”

14
Rafisa olhou o matuto
De cima a baixo e botou
A mão no colo e virou
Com aquele ar arguto

15
E na mesa da cozinha
Sem a bola de cristal
Sentou depois da voltinha
Com seu jeito sensual.

16
“Como digo a vosmecê
Ando muito agoniado
Duma paixão sem mercê
Por um sonho inalcançado.

17
Ela se chama Lazinha
E nem sabe que eu existo,
Filha do coroné Xisto
Tar quar uma princesinha.

18
Quando passa amuntada
Joga moeda no ar
Pra meninada catar
No meio da gritaiada.

9
Um dia chegou na frágua
Pedindo um pouco de água
Bebeu sem me oiá, pensei,
Ou fui eu que não oiei

20
A não ser, pro seu pezinho,
Carçado cuma alpercata
Fina, de ouro e prata
Mostrando aqueles dedinho

21
Que prestei muito sentido,
Para minha perdição
O segundo mais comprido
Que o primeiro, como a mão.

22
Depois disso, ó minha mágoa,
Só brinca de esconde esconde:
Já não quis mais pedir água
Na casa deste visconde.

23
Siá Rafisa, me diga
O que faço pra arrancá
Do meu peito essa urtiga,
Pra dessa paixão me livrá?”

24
A cigana reparou
Nos olhos do capiau
Botou cartas e apontou
Um modesto dois de pau.

25
“Hóme,” disse a cigana,
“Tá escrito aqui tão claro,
E essa carta não me engana,
Que não vou nem cobrar caro.

26
A coronelinha vai
Beber água em sua palma
Mas num posso dizer mais
Pelo bem da minha alma.”

27
O matuto se afastou
Semeado de esperança
E pra sua forja voltou
Terminada a sua andança.

28
Uma semana passada,
Voltou ele galopando,
Parecendo alma penada,
E chegou logo gritando:

29
“Siá Rafisa, bota a sorte
Que quero o dia saber
E a hora da minha morte
Para o quanto vou dever

30
Porque de hoje não passo:
A moça veio beber
Da parma deste palhaço
Mas foi de tanto sofrer

31
No momento do trespasso.
Caminhou mais de três légua
Sangrando quase sem trégua
Pra vir morrer no meu braço.

32
Baleada no pulmão
Por um pretendente em mágoa,
Morreu bebendo da água
Da parma da minha mão!”
12/07/2001