domingo, 12 de agosto de 2007
Romance da Rendeira ( Cordel de Guilherme de Faria)
( Dedicado ao poeta mineiro Claudio Bento,
meu amigo, e grande intérprete
do seu encantado Vale do Jequitinhonha)
1
Chora viola na alma,
De mim, que canto sem ela.
Canto a seco, leio a palma
Pinto sem tinta e sem tela.
2
Ando por esse Brasil
Que é todo imenso sertão:
A “sociedade civil”
Não é civilização.
3
Pelo menos por enquanto
Com tanta bala perdida
Vou voltar para o meu canto
Antes que aqui perca a vida.
4
Lá no sertão verdadeiro
Pelo menos sei o rumo
Basta olhar um vaqueiro
E sei o que é ter prumo.
5
Se quero ir para o norte
Lanço a palha, lanço a sorte
O caminho eu mesmo faço
Jogo cartas, jogo laço.
6
E no final ganho a vida
Em toda a sua acepção,
Ganho fama e a acolhida
Dessa gente do sertão.
7
Por isso, pra começar
Vou afiando a viola
Dentro da minha cachola
Para um causo desfiar.
8
Me dê um mote, envista,
Qualquer um: ciúme ou contenda.
Não sou nenhum repentista
Mas escrevo de encomenda.
9
Ciúme? tá bem, eis o mote,
Embora pareça banal
Pois se queres logo um lote
Basta folhear jornal.
10
Mas se queres mesmo um caso,
Vou contar uma tragédia
Pois ciúme é muito raso
Se não entrar na Enciclopédia.
11
Havia na minha aldeia
Uma única beldade,
Moça prendada rendeira,
Leal como a lealdade.
12
Jamais trairia alguém
Quanto mais o seu amor,
Mas foi do ciúme refém,
Causadora de rancor.
13
Sem lamentar o seu fado,
Sem levantar os olhinhos,
Quanto mais olhar pro lado
Com tantos urubuzinhos.
14
Ciúme, que coisa fútil,
Se não fosse “catastrófe”
Para falar desse inútil
Necessito nova estrofe.
15
Desculpem a rima falsa,
Falsa como o mesmo ciúme
Que só pensar dá friúme,
Mala vazia, sem alça.
16
Pois a nossa heroína
(vou chamá-la de Malvina
Para facilitar a rima
Em mais dois versos de cima)
17
Era pura e verdadeira
Não merecia o cutelo
Com que foi morta na esteira,
Por um que nem era Otelo.
18
Tudo começou com a renda
Que Malvina enredou
Por uma falsa encomenda
Que um malungo inventou.
19
Era bem fácil fazer
A moça se dedicar
A um trabalho de tecer,
E por isto se apaixonar.
20
Cada trabalho de renda
Era por si um louvor
À beleza e ao amor,
Embora estivesse à venda.
21
Mas aquele pervertido
Sendo esperto e atrevido,
Aproveitou-se do fato
E comprometeu tal ato.
22
Todo dia vinha olhar
O andamento da trama,
Punha sugestão no ar,
E muito louvor, o sacana.
23
Com isso comprometia
O trabalho da artezã
Com a sua companhia,
Com a sua teia vã.
24
Eis, senhores, a maldade
Contida no sedutor:
Para enrolar uma beldade
Basta um fio condutor.
25
E assim, qual Ariadne
Às avessas, desfiou
O fio da teia de Aracne
Pro labirinto que armou.
26
O noivo da bela Malvina
Afinal desconfiou
Dessa teia muito fina
E de quem a encomendou.
27
Aquilo era uma obra-prima,
Só podia ser paixão;
Traição, ó triste rima
Para um causo do sertão!
28
Pois onde entra a maldita
Sai o amor, entra a desdita
E logo assoma a morte
Co’ algum instrumento de corte
29
Como cutelo ou sovela
Como foi no caso dela,
Que o noivo era sapateiro,
Nas horas vagas, coveiro.
30
Malvina naquela noite
Cujas horas como açoite
Demoravam a passar
Esperando o seu penar,
31
Sabendo que o confronto
Viria na hora do sono
Pois o ciúme, seu patrono,
Tinha atingido o ponto
32
Mais alto, naquela mente
Do sapateiro demente
Que naquela mesma hora
Resolvera: “É agora!”
33
Malvina fez uma prece
E cantou uma canção
D’um salgueiro que, parece,
Não existe no sertão.
34
E depois deitou na esteira
Com a mão no coração:
Ele assomou na soleira
Com a sovela na mão
35
E perguntou: “Já fizeste
A oração que lhe cabe?
Pois agora tu me deste
A permissão que te acabe.”
36
E degolou a ovelhinha
Que só um suspiro deu,
Morrendo a pobrezinha
Por perfecionismo seu.
37
Pois seu único pecado
Foi o amor e a candura
Que aquela alma pura
Pôs num trabalho arretado:
38
Uma renda, uma teia,
Exposta numa parede
Do museu da nossa aldeia
Que tem renda... e tanta rede!
27/05/2005
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Um comentário:
Guilherme, obrigado por dedicar-me tamanha beleza, espero poder retribuir em versos esta grande e bela homenagem.
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